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“No Brasil, pode dizer-se que só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicado a interesses e objetivos, e fundados nesses interesses. Ao contrário, é possível acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal.”
Sérgio Buarque de Holanda, in Raízes do Brasil
Logo após a Independência do Brasil, os ministros tiveram seus vencimentos reduzidos à metade do que habitualmente recebiam no tempo de D. João VI, por falta de recursos do tesouro. Conta-se que, na ocasião, José Bonifácio, o Patriarca da Independência, tendo recebido do banco – em espécie – o montante do mês do seu ordenado, optou por guardar os bilhetes no fundo de seu chapéu, antes de ir ao teatro.
Ali, descuidado de seus pertences, o Primeiro-Ministro do recém-inaugurado Império do Brasil teve furtado não apenas o chapéu, mas também o seu conteúdo, ficando sem condições até dearcar com as despesas do jantar, naquela noite. No dia seguinte, na presença do Conselho, José Bonifácio narrou o ocorrido, ressaltando a extrema necessidade que agora se encontrava, e a sua família. O Imperador entendeu o estado de penúria do seu Primeiro-Ministro e decidiu então que o mesmo deveria ser indenizado com outro mês de ordenado, dando as ordens neste sentido ao seu Ministro da Fazenda.
Contudo, Martim Francisco (irmão de José Bonifácio e Ministro da Fazenda) decidiu não obedecer às ordens do Imperador, justificando tal atitude por “não haver lei que pusesse a cargo do Estado os descuidos dos empregados públicos; que o ano tinha para todos12 meses, e não 13 para os protegidos”. Martim solicitou ainda a D. Pedro retirar aquela ordem, porque não era exequível, informando ao Imperador que repartiria o seu ordenado com o irmão, que viveriam ambos com mais parcimônia naquele mês, o que seriamais justo e melhor do que dar ao País “o funesto exemplo de se pagar ao Ministro duas vezes o ordenado de um só mês.”
O ano era 1823, o Brasil tornara-se independente de Portugal havia oito meses, e os estadistas imperiais tinham uma pátria a organizar, uma nação a construir, um povo a governar. Foi essa estirpe de homens públicos, estadistas, representantes da elite política e intelectual da época, liberal, culta e decente, que esboçou nossa primeira Constituição. Unidade, plena emancipação política, liberdade de imprensa e ordem eram os valores que nortearam nossa primeira Assembleia Constituinte, retardada o quanto possível por José Bonifácio, segundo ele “[...] até que o Brasil, livre de inimigos e facções, pudesse constituir-se sem baionetas.”
D. Pedro I não aceitou a tentativa de redução do seu poder, dissolveu a Assembleia Constituinte e nomeou em seguida um Conselho de Estado, que de fato elaborou a Constituição, outorgada em março de 1824. Nossa primeira Constituição nasceu de uma crise. Mas, ela serviu para que se ouvissem osecos da guerra da independência dos Estados Unidos, da Revolução Francesa e das novas repúblicas na América espanhola, e o texto imperial estabeleceu uma monarquia constitucional hereditária, mais liberal até que aquele proposto pelos constituintes, embora garantisse amplos poderes ao monarca.
No “Brasil Colônia”, o chamado “fator geográfico”, decorrente da extensãoterritorial, da precariedade dos meios de circulação e comunicação, impusera aarquitetura política colonial brasileira, pulverizando o poder nas Capitanias. Portugal tolerou “dividir para governar”, estabelecendo então uma espécie de“aristocracia tupiniquim” dos senhores das terras, o que na ocasião mostrou-se a política adequada para maior arrecadação e melhor defesa fiscal da coroa.
E a Colônia viveu sob o arbítrio dos grandes proprietários rurais, o que naturalmente viciou as capacidades legislativa e coercitiva do Estado. Mas,embora os próceres da Independência logo percebessem que a nova estratégia político-administrativa deveria ser a de “centralizar para governar”, condição primeira para a manutenção da unidade política do novo país, a nação jamaisconseguiu substituir de todo aquelas práticas coloniais arraigadas de compartilhamento do poder.
De fato, na ocasião da Independência, nosso território já era habitado por uma numerosa nobreza latifundiária, opulenta e mais culta que aquela da Colônia, uma reconhecida “mandocracia”, com poderes políticos acima inclusivedaqueles do Imperador.
Com ela, haveria governo; sem ela, seria muito difícil. Não sem razão, D. Pedro I concedeu mais títulos nobiliárquicos durante seu curto reinado do que a monarquia portuguesa em 736 anos. Mal ou bem, foramessas elites locais que na prática construíram nossa nacionalidade,contribuindo na pacificação da nação, submetendo-se – sim – ao centralismo do Império, depois ao da República, mas não sem deixar de impor, sempre de forma “mandocrática”, seus diversos interesses particulares.
Sete Constituições o País concebeu na solução das sucessivas crises, mas ainda hoje o Estado continua fraturado politicamente, sem conseguir se livrar de uma realidade de opressão, corrupção, ignorância, tributos extorsivos, administração arbitrária, e dilapidação dos orçamentos, inolvidáveis herançasde Portugal dos Bragança.
Em pleno Século XXI, a nação brasileira está polarizada, com os poderes da república em conflito e as instituições desmoralizadas; a população submetida aos maiores impostos e ao pior serviço público do mundo; um sistema político partidário hiper fragmentado,vocacionado para lavagem do dinheiro público; e, principalmente, com asmesmas elites locais e regionais, sobrevivendo da disputa feroz e corrupta pelos recursos da União, incapazes de articular qualquer projeto democrático de interesse nacional.
O revanchismo juvenil do regime militar acabou gerando uma “democracia relativa”, espécie de “comunismo trans”, imposto por um bando criminoso que sequestrou a Constituição - legitimado pela omissão do Congresso - mas que de fato como resultados só trouxe insegurança jurídica e a atual crise constitucional. Nossa Corte Suprema, um colegiado constitucionalista por vocação, desvirtuou-se em tribunal criminal de decisões monocráticas, de juízes que julgam causas defendidas por cônjuges, e que promovem com naturalidade, ao arrepio da própria Constituição, perseguições e prisões políticas, condenações de parlamentares, absolvições de criminosos confessos, prescrições premeditadas de crimes comuns.
As elites tupiniquins – militares, empresários, advogados, religiosos etc. –forjaram esse Brasil, único no mundo na sua forma de superar crises. É responsabilidade dos atuais estadistas retomar as rédeas da nação e resgatar a democracia, com uma nova Constituição. Hoje, é a única forma de obrigar os poderes restringirem-se às suas atribuições originais, de fazer o País “(re)constituir-se sem baionetas” - e sem sangue.
Gen Marco Aurélio Costa Vieira
Foi Comandante da Brigada de Operações Especiais e da Brigada de Infantaria Paraquedista
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