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Não sorrir? Por quê? Vamos sorrir sim. Com essa afirmação, Eunice Paiva seguiu a tocar sua vida que virou de ponta à cabeça de um dia pra outro e demorou mais de 25 anos para ter o mínimo de respostas.
A sua frente cinco filhos, sem estado civil definido e com as implicações a isso pertinentes, incertezas, temores e uma ditadura tomando a face mais cruel da história do Brasil. Eunice Paiva, em 1971, dona de casa, formada em letras, sem exercer a profissão, com a vida em ordem, viu seu marido, o então engenheiro e Deputado Rubens Paiva, que jamais participou de luta armada, sair de casa no dia 20-01-1971, acompanhado por militares e nunca mais voltou. Foi lhe negado o direito sagrado de sepultá-lo, sequer saber seu paradeiro.
Foi torturada dias a fio, sua filha de 15 anos também, e viu sua família sofrer duramente. Adiante Eunice se tornou brilhante advogada com uma contribuição notável para o Brasil, inclusive responsável pela abertura da Comissão dos Desaparecidos no governo de FHC, ponta pé para as futuras Comissões sobre o assunto.
Nesta quarta de cinzas seguimos eufóricos sob efeito da trajetória de Ainda Estou Aqui. E não é pra menos! Não foi a primeira vez do Brasil no tapete vermelho da fama, em 1945 fomos indicados a melhor trilha sonora, em 1960 a melhor filme estrangeiro, mas representávamos a França, em 1963, melhor filme com O Pagador de Promessas, em 1989 com o histórico Central do Brasil, entre outros, no entanto, não levamos a famosa estatueta.
Mas agora, vamos sorrir sim Eunice! Vamos sorrir porque Fernanda Torres explodiu o Brasil de brasilidade, competência e de memória, da sua memória agregada a de centenas de brasileiros cujas famílias foram igualmente vilipendiadas, ultrajadas.
Ainda Estou Aqui vai muito além da história de Rubens Paiva. Essa é a nobreza e o valor do prêmio e do filme, que merecidamente volta pra casa com a estatueta de melhor filma estrangeiro. A despeito de juízos de valor, é claro que Fernanda Torres arrebatou o Oscar de melhor atriz. Inquestionável. Com toda deferência a Mikey Madison e seu trabalho muito bem feito, Fernanda tem uma história consolidada e em Ainda Estou Aqui sua performance sobeja talento e passeia por universos e estilos que só uma atriz do seu quilate, inteligência e expertise é capaz. Levou-nos as lágrimas e sentimentos indizíveis sem pieguices, até porque a história assim exigia e sua personagem mais ainda. Só seria mais justificável a disputa com Demi Moore pelo conjunto da obra. Mas Oscar é Oscar. Sabido.
Fernanda e Eunice moveram o Brasil de uma forma pouco vista por conta de um filme, e não do futebol e do samba marcas peculiares do Brasil. O filme uniu pessoas, quebrou barreiras. Tocou corações. Esse é o poder da arte que curiosamente fez essa ponte tendo sido tão sucateada por muitos anos. Por isso é tão temida por governos autoritários. A história comprova.
O filme levou mais de cinco milhões de brasileiro as telonas, um recorde de bilheteria nos últimos tempos contando uma história que precisa ser lembrada sempre, sobretudo, em um país que nos dá sobressaltos, tempos em tempos. Um resgate histórico importantíssimo. Muito recentemente tivemos um Secretario de Cultura, sim Secretário, porque à época o Ministério a Cultura foi extinto, que disparou um vídeo ao estilo nazista e chamou a maior atriz brasileira viva, a incomparável, Fernanda Montenegro, que também está no filme, com uma participação especialíssima, de mentirosa e sórdida. Foi seguido de outros do mesmo nível, sem contar os cortes dramáticos nos orçamentos que a pasta enfrentou nesses tempos bicudos. Nunca foi primazia de nenhum governo, mas nesse foi ápice do descaso perdendo 60% dos investimentos, no que já era pouco.
Para além do filme, que teve três indicações ao Oscar e nos coloca de frente pro mundo, o Brasil teve outras presenças importantes em mostras competitivas nas ultimas edições de Cannes, Veneza e Berlim. A cultura brasileira é um farol para o mundo nos enxergar como somos, falando de uma história nossa, da nossa aldeia. E o mundo entendeu. Isso é fantástico e promissor. Não por menos o Brasil foi anunciado como ‘país de honra’ na edição 2025 do Marché du Film, no Festival de Cannes.
Walter Salles que já pisou o tapete vermelho acertou em cheio, foi brilhante em tudo, em cada particularidade que uma obra cinematográfica exige, porque é sob sua batuta que tudo acontece. Chegou a sua vez, chegou a nossa vez. Agora não tem mais como segurar a volúpia criativa do Brasil e seus criadores. Tomara que os investidores atentem ao holofote que é o Brasil e a firmeza de nossa arte, da nossa cultura que foi representada para o mundo em português, na nossa língua mãe, e ainda, aquece o mercado. Um filme que aborda crimes hediondos ainda sem punições, crimes contra a humanidade, que se uniu a literatura, carregado de simbolismos, e, sobretudo, nos fala de amor, resistência, perseverança e gentileza.
Eunices, Clarices, Zuzus, Therezas estão Brasil afora celebrando, apesar da dor, das incongruências, dos absurdos, da crueza com esse relato de luta e sobrevivência de uma mulher que nos devolveu a esperança, nos representa e nos deu o primeiro Oscar. Que nos sirva de luzeiro já que o passado sempre sugere aprendizado para o futuro. E nesse caso, não esquecer é apontar para um novo tempo. Fica o recado: retrocesso nunca mais. Merecidíssima celebração.
‘Brasil, meu Brasil brasileiro, vou cantar-te nos meus sonhos’, é o sentimento que nos arrebata como proclamou Ary Barroso, que também sentiu de pertinho a emoção do Oscar. Que filme Walter, exclamou Fernanda, e é isso que nós repetimos com mesmo entusiasmo e gratidão a vocês. A vida presta, Fernanda! Vamos sorrir, sim.
Por Rogéria Gomes
Jornalista, escritora e diretora
teatroemcenanoradio@gmail.com
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