MARÇO DE 1964 – O MÊS QUE NÃO ACABOU - Parte I

I – A HISTÓRIA IGNORADA

MARÇO DE 1964 – O MÊS QUE NÃO ACABOU - Parte I

*Por Gen Marco Aurélio Vieira – março 2024

 I – A HISTÓRIA IGNORADA

“Como liberal que sou, não posso querer para o meu país o governo da espada; mas não há quem desconheça, e aí estão os exemplos, de que é ele o que sabe purificar o sangue do corpo social, que como o nosso, está corrompido...” Floriano Peixoto, 2º-Presidente do Brasil, em carta ao Sr João Neiva - 1887

Uma preocupação que deve ter o estudioso do movimento militar de março de 1964 é analisá-lo como um acontecimento histórico, embora sessenta anos seja um prazo muito curto, que talvez não permita ainda a necessária isenção à verdadeira História. Contudo, uma revisão factual, com base em fontes idôneas, pode nos proporcionar um mínimo distanciamento crítico, para algumas conclusões imparciais.

Neste sentido, é preciso começar o estudo pela evolução política do país no Século XX, e que as testemunhas oculares remanescentes daquele dramático mês de março, e suas consequências, sejam capazes de atestar versões menos romantizadas, despidas da sua ideologia motivadora. 

O Exército Brasileiro iniciou sua politização no último quartil do Século XIX, identificando-se com o Positivismo, do francês Augusto Conte, uma doutrina meritocrática, difundida por mais de trinta anos na antiga Escola Militar, notadamente por Benjamin Constant. Os dogmas positivistas – “O amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim” – influenciaram gerações de oficiais, marcaram politicamente nossa História e perpetuaram-se no lema da bandeira nacional. O positivismo apresentou uma alternativa para o papel social dos militares brasileiros, carentes naquela ocasião de uma identidade política: a doutrina do soldado-cidadão.

Foram os “soldados-cidadãos” que capitanearam as primeiras manifestações de pressão político social, no final do Século XIX, passando a se apresentar como legítimos representantes da classe média brasileira, aceitos ou tolerados, quando não estimulados pelos civis a participarem da vida pública. O abolicionismo politizou a oficialidade do Exército, que liderou a luta pela libertação dos escravos, principal exigência da classe média.

A queda da monarquia em 1889 – seguida da fase militar inicial do governo republicano – foi o primeiro autêntico movimento insurrecional de uma classe social no Brasil.  Em uma perspectiva histórica mais ampla, verifica-se que aí também se inaugurou a prática das intervenções militares, que passaram a ser rotineiras no processo político do país, mas sempre em defesa do modelo democrático republicano de governo, de inspiração positivista.

As revoltas tenentistas dos anos 20, e a Revolução de 1930 são comprovações da crescente força da classe média ao longo do Século XX, que logrou conquistar o poder com Getúlio Vargas, mas continuou dependendo das Forças Armadas, para sua manutenção. De fato, o Brasil só conseguiu evoluir de uma sociedade de notáveis, característica do Império e da Velha República, para uma sociedade de classe média, depois da Revolução de 1930, quando esta passou a controlar o poder político, enquanto o poder econômico se transferia gradativamente, do patriarcado rural para o capital industrial.  

Restaurado o regime constitucional, reconstituídos os quadros políticos, recolheram-se os militares aos quartéis, mas não se desligaram da política. A Intentona Comunista de 1935 motivou o golpe de estado de 1937, executado pelos militares, mas que teve Vargas como protagonista e principal beneficiário. Outra vez, os militares assumiram a função de árbitros e estabilizadores do regime, sem que se apropriassem de fato do poder, postura moderadora que passaram a adotar explicitamente daí em diante, sempre que julgaram ameaçado o sistema existente.

No ambiente tenso pós II Guerra Mundial, prestigiadas pela participação na vitória contra os nazistas, as Forças Armadas continuaram mantendo a missão de vanguarda da defesa dos valores da classe média, passando a reprimir ostensivamente movimentos de luta por poder político – de crescente inspiração marxista – agora patrocinados por defensores do “proletariado”.

Mesmo o movimento militar de 1945, justificado como para acabar com a ditadura do Estado Novo, na verdade já apresentou um viés “antissocialista”, visto que o Vargas então deposto não era mais aquele defensor da democracia de 1930/32, mas sim um demagógico e fabricado “pai dos pobres”.  Desde 1943, Getúlio modificara o sentido político-social de governo, orientando-o em uma direção “trabalhista”, incentivando o “queremismo” antidemocrático (queremos Vargas!), com apoio do líder comunista Luís Carlos Prestes, o que provocou automática dissintonia com os militares. 

A partir do final dos anos 40, a urbanização e a industrialização se aceleraram, gerando o ingresso desordenado de uma sociedade de massas no processo político brasileiro. A rigidez do sistema e a falta de uma representatividade efetiva acentuavam as fissuras institucionais, e aquela classe operária mais organizada passou a tumultuar o quadro político-social do país, exigindo seu próprio espaço e abrindo justificativas de confronto. Resultado: durante vinte anos, sucessivas crises ameaçaram a democracia brasileira.

Neste período conturbado, apenas dois presidentes concluíram seus mandatos, Eurico Dutra e Juscelino Kubitschek, e a partir de outubro de 1945 (deposição de Vargas), ainda aconteceram: o manifesto dos coronéis (1954); o suicídio de Vargas e os impedimentos de Café Filho e Carlos Luz (1955); a revolta de Jacareacanga (1956); a revolta de Aragarças (1959); a renúncia de Jânio, a prisão do Marechal Lott, o drama da posse de Jango, e a adoção do parlamentarismo (1961); a volta do presidencialismo e a revolta de 30 mil agricultores no Recife (1963); e a escalada da crise no final do governo de Jango (1964). 

Em todas essas situações, as Forças Armadas evitaram assumir o poder, aparecendo sempre como fiadoras do movimento de reação conservadora da classe média, que se via paulatinamente não só perdendo poder político, mas também ameaçada em suas das liberdades e valores, caso uma alternativa esquerdista se impusesse. Os militares estavam conscientes de haver preservado – até então e a duras penas – não só os interesses da classe média, mas também a própria democracia.

 A “solução brasileira” pós-intervenções militares, de democraticamente ceder o poder em confiança aos civis “conservadores”, se mostrara apenas paliativa, nas repetidas vezes que fora tentada. Em pleno turbilhão da guerra fria (1947-1991), o perigo se mostrava redobrado, partindo agora do próprio governo, respaldado por agentes externos de regimes autoritários assassinos, e com ameaças ao Exército, maiores do que aquelas provocadoras da Proclamação da República. 

A reação militar de 1964 decorreu quase naturalmente da escalada de crises institucionais conservadoras, delineadas desde a vigência da Constituição de 1946, e foi a última oportunidade de as espadas fazerem acontecer os ideais dos tenentes de 1922. Aquele mês de março fechou o ciclo histórico dos “soldados-cidadãos”, na vanguarda dos ideais e interesses da classe média brasileira, mas escancarou os portões do país para a guerra ideológica, que perdura até hoje. 

*Gen Div R1 Marco Aurélio Vieira

Foi Comandante da Brigada de Operações Especiais e da Brigada de Infantaria Paraquedista

** Este texto é de opinião e é de total responsabilidade de seus idealizadores. 

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