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Por Eduardo Graça, em O Globo
No livro O pobre de direita - a vingança dos bastardos, Jessé Souza defende ser impossível entender o apelo do bolsonarismo aos menos privilegiados sem levar em conta, de um lado, o racismo regional no país, com a enorme identificação “dos pobres brancos do sul e de São Paulo” com o ex-presidente, e, de outro, a inação da esquerda, “que nem mais tenta disputar áreas periféricas com grande presença das igrejas evangélicas”.
Voz destacada da esquerda na academia, o professor da Universidade Federal do ABC critica o protagonismo dado pelos partidos progressistas às pautas identitárias.
Nunes e Marçal chegaram na frente em áreas periféricas nas zonas Sul, Norte e Leste em São Paulo. Foi o voto do “pobre de direita”?
Sem dúvida. Passamos por um processo de idiotização das pessoas e de inação dos que deveriam fazer um trabalho de base de qualidade. Quando comecei a entrevistar, para o livro, há alguns anos, pessoas das periferias de São Paulo, me desesperei. O quadro já era o de “tá dominado” pela Teologia da Prosperidade, neoliberal e reacionária.
O Datafolha mostra que 84% dos eleitores de Marçal devem migrar para Nunes no segundo turno. O quão ideológico é esse voto?
O pastor evangélico é uma espécie de coach e Marçal escancarou a faceta neoliberal do neopentecostalismo, coma ética da prosperidade e o culto vazio à capacidade do indivíduo. A esquerda até pode reconquistar esse eleitor, mas, para isso, precisará mostrar a ele que as limitações estruturais do empreendedorismo popular estão ligadas à retenção do capital na Faria Lima.
A esquerda foi incapaz de conversar com o “pobre de direita” nestas eleições?
Foi. A esquerda errou, e muito. Não procurou, com louváveis exceções, conquistar os corações e as mentes dos mais pobres. Se você não apresenta nada minimamente organizado e sequer tenta ir às periferias urbanas e rurais, o trabalho das igrejas evangélicas, marcado pelo anti-esquerdismo, ganha sentido político ainda mais explícito.
Nesse sentido, o senhor escreve que se criou um eleitorado cativo entre os pobres que, apesar de não conseguirem mudança econômica com seu voto, vivem a violência da extrema-direita como expressão de suas angústias e ressentimentos?
A chave, para a direita, é a de fazer com que o pobre se acredite valorizado, respeitado, quando antes era permanentemente humilhado. Ele aceita assim como possibilidade de salvação ser celebrado e reconhecido por ser honesto, “de bem”, poder vencer por conta própria. No balanço, é uma reação muito mais moral do que econômica, ainda que passe pelo material. As igrejas evangélicas ofereceram a doutrina, montaram a solidariedade interna e a base social para se enfrentar a injustiça social.
O senhor identifica componente racial regional no voto do pobre de direita, que teria sido fértil para o bolsonarismo?
O pobre de direita de São Paulo ao Rio Grande do Sul vê no ex-presidente Jair Bolsonaro um semelhante. Nestes estados, a maioria das pessoas se identifica como branca. Já no restante do país, com maioria de pobres, mestiços e pretos, a identificação não é tão direta. Bolsonaro consegue expressar o sentimento social do branco que trabalha duro e crê estar bancando o outro pobre, o do norte, o menos branco, com assistencialismo, como Bolsa Família.
O senhor critica o protagonismo das pautas identitárias pela esquerda. Isso a teria distanciado ainda mais dos eleitores mais pobres?
Sim. Foi um erro completo. E Boulos está pagando o preço desse equívoco agora em São Paulo. Não basta essa esquerda “legal”, que discute gênero e raça. Ainda importa contar ao eleitor por que um cidadão ganha R$ 100 mil enquanto outro R$ 100, porque há pessoas tão diferentemente aparelhadas para a competição social, para além das diferenças de gênero e raça. Se não perceber isso logo, a esquerda deixa este pobre na direita. Não se ganha eleição no Brasil sem o voto da maioria pobre, e a esquerda precisa pelo menos tentar voltar a disputar este voto. Sei que vou levar cacetada, mas está na hora de o PT aprender com Getúlio Vargas.
O senhor defende um encontro do PT com o varguismo?
Sim. Validar esse pobre é importante. É o que Getulio fez, inclusive do ponto de vista racial. Para redimir o humilhado, é preciso celebrar suas virtudes, afirmar que eles não são lixo, o que a direita faz hoje, ainda que de modo enviesado. O PT nasceu dando de ombros para a herança getulista, opondo o sindicato livre ao peleguismo trabalhista. Tudo bem. Mas, sendo simplista, PT e PSDB são mais parecidos do que imaginamos, nascidos de braços diversos da mesma elite paulista com pendores social-democratas. Quem ofereceu a face popular ao PT foi o Lula. Depois dele, o PT pode estar destinado à mesma — pouca relevância do PSDB hoje. A não ser que volte a conversar com os pobres. E não só pela ótica econômica.
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