O caos como espelho do caos

Por Prof. Jorge Tardin

O caos como espelho do caos

No início de abril, o Brasil assistiu a mais um episódio exemplar da simbiose — cada vez mais tensa — entre política, comunicação digital e mercado. O influenciador Felipe Neto, figura central no debate público contemporâneo, publicou vídeos e materiais nas redes sociais anunciando uma suposta pré-candidatura à Presidência da República, além da criação de uma nova rede social denominada “Nova Fala”. O anúncio provocou perplexidade, mobilizou a imprensa, inflou as redes sociais e, em menos de 24 horas, revelou-se: tratava-se de uma campanha publicitária para o lançamento do audiolivro 1984, de George Orwell, pela plataforma Audible.

A iniciativa, embora engenhosa em sua estrutura e eficaz em seus efeitos de difusão, expôs dois planos distintos que, quando entrelaçados, revelam o paradoxo central deste artigo: a justa crítica de Felipe Neto ao ambiente de desinformação e à superficialidade da cobertura midiática — de um lado —, e, de outro, a utilização desse mesmo ambiente para fins promocionais, por meio de uma estratégia que, ao fim, viola o Código de Defesa do Consumidor.

Alerta legítimo à desinformação. Felipe Neto é, gostemos ou não, uma das vozes mais expressivas da sociedade conectada. Ao encenar uma candidatura fictícia e uma rede social imaginária, o influenciador pretendia — como ele mesmo afirmou — “mostrar como as fake news se propagam e como a grande imprensa, muitas vezes, noticiou sem apuração adequada”. De fato, diversos veículos replicaram a informação da candidatura sem o cuidado de confirmar sua autenticidade.

Neste ponto, a crítica é procedente. O ecossistema informacional brasileiro é poroso e frequentemente marcado pela lógica da velocidade, não da veracidade. A viralização de conteúdos — sejam eles políticos, comerciais ou culturais — tem demonstrado que a fragilidade dos filtros jornalísticos e a ausência de leitura crítica por parte dos usuários constituem um risco estrutural à democracia informada.

Entre ideologia e interesse. Assim, reconhece-se a legitimidade do gesto performático como provocação ética e política. Há mérito em expor as engrenagens frágeis da comunicação pública e em evidenciar a credulidade com que informações não verificadas se tornam verdades instantâneas.

Entretanto, é precisamente nesse ponto que a crítica se entrelaça com a contradição. O gesto político foi, ao fim e ao cabo, instrumentalizado para fins mercadológicos. A revelação de que tudo fazia parte da campanha de lançamento de um produto — o audiolivro 1984 — desloca o gesto do campo da denúncia para o campo do consumo. A simulação de uma candidatura e de uma nova rede social não teve por fim único denunciar os vícios do debate público, mas também induzir, mediante encenação, o público a consumir um produto cultural específico.

Essa prática encontra, no Código de Defesa do Consumidor (CDC), limites claros. O art. 39, IV, veda expressamente práticas que se aproveitam da ignorância ou da vulnerabilidade do consumidor. E o art. 37 considera enganosa toda publicidade que omita informações essenciais, distorcendo a compreensão do consumidor quanto à natureza do produto ofertado. Ora, a campanha foi construída sobre uma narrativa ambígua, cujo objetivo era justamente a confusão controlada como motor de engajamento.

A contradição ética emerge aqui de forma evidente: ao denunciar o ambiente da desinformação, Felipe Neto reproduz — com sutileza e sofisticação — a mesma lógica que critica. A encenação da realidade, quando mobilizada para interesses comerciais, mesmo que nobres em sua origem (promover literatura crítica), não escapa aos limites jurídicos e morais que regem a publicidade no Brasil.

Um falso dilema? Alguns dirão que não há conflito entre ideologia e interesse — que é possível, e até desejável, utilizar estratégias mercadológicas para veicular obras de valor crítico. Mas isso não isenta os atores da responsabilidade quanto à forma de comunicação empregada. O problema não está no produto em si — um audiolivro de 1984 é, por definição, um bem cultural de importância. O que se questiona é o método de divulgação, que fez uso de um expediente tipicamente publicitário — a simulação — para provocar reações que, ao fim, foram canalizadas para um objetivo de consumo.

A sabedoria popular ensina: “de boas intenções, o caminho do inverno já está pavimentado”. A crítica política de Felipe Neto, válida em sua essência, perde força quando vinculada a uma prática que induz o público ao erro, utilizando o capital simbólico da democracia e da liberdade de expressão como mecanismo de captura de atenção para um fim mercantil.

A responsabilidade na comunicação em tempos de ruído. A era digital ampliou a potência das mensagens, mas também elevou o grau de responsabilidade de quem as emite. Personalidades com milhões de seguidores, ao se engajarem em campanhas que mesclam elementos de comunicação institucional, política e comercial, devem exercer um cuidado redobrado com os meios utilizados.

Felipe Neto trouxe à tona um tema essencial — a fragilidade da informação em tempos de hiperconectividade. Mas, ao fazê-lo por meio de uma estratégia publicitária opaca, resvalou para a prática comercial abusiva. O caos que denunciou é, também, o caos que refletiu. Um espelho onde a intenção justa e a execução questionável coexistem.

O episódio não deve ser lido como condenação, mas como advertência: quando a crítica à desinformação se torna ela própria instrumento de engano, o campo da ética cede lugar ao campo da contradição. E é justamente essa contradição que nos desafia, como sociedade, a refletir sobre os limites entre liberdade, responsabilidade e o comércio das ideias.

Prof. Jorge Tardin
 Advogado e Professor de Direito

Por Ultima Hora em 11/04/2025

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