PMs mataram jovem cego para vingar morte de colega, diz MP-SP

Hildebrando foi confundido com criminoso, estava desarmado e rendido quando foi executado dentro de casa

PMs mataram jovem cego para vingar morte de colega, diz MP-SP

Por Catarina Duarte – Ponte Jornalismo

A Justiça de São Paulo tornou réus os policiais das Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (ROTA), Nielson Barbosa Medeiros e o capitão Tiago Morato Maciel por homicídio duplamente qualificado. A denúncia diz respeito às mortes de Hildebrando Simão Neto, de 24 anos, e Davi Gonçalves Junior, 20, assassinados dentro de casa, durante a Operação Verão na Baixada Santista. A decisão foi publicada na última quinta-feira (30/1).

O juiz Luís Guilherme Vaz de Lima Cardinale acatou a denúncia do Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP). Segundo o MP, os policiais alteraram a cena para simular que as vítimas estavam armadas e obstruíram as câmaras corporais. Hildebrando foi morto por ter sido confundido com o suspeito de matar o policial Samuel Wesley Cosmo e Davi por ter testemunhado a ação, diz o órgão.

Para encobrir o “acerto de contas”, os policiais passaram a simular um confronto e o encontro de armas. A denúncia foi feita em 18 de dezembro e é assinada pelos promotores Marcio Leandro Figueroa, Raissa Nunes de Barros Maximiliano, Daniel Magalhães Albuquerque Silva e Francine Pereira Sanches.

Quanto aos cabos Rodrigo Oliveira Souza e Diogo Barbosa Medeiros, que também estiveram presentes na ação, o MP pediu o arquivamento das investigações. O argumento foi de que Rodrigo, motorista da viatura, ficou na parte externa da casa, fazendo a segurança da via e da viatura. Já Diogo não teria entrado no cômodo onde estavam as vítimas.

Essa decisão ocorreu mesmo com o próprio MP reconhecendo que os quatro policiais obstruíram as câmeras corporais para impedir a captação de imagens.

A mãe de Hildebrando, que pediu para não ser identificada por medo de represálias, ficou emocionada com o andamento do caso. “É uma sensação de querer correr, gritar, chorar. É tudo junto e misturado. A justiça de Deus está sendo feita e da terra também”, disse.

A Ponte teve acesso à denúncia. Os fatos narrados a seguir dizem respeito ao que foi apurado pelo Ministério Público.

PMs queriam vingar colega

A morte dos jovens ocorreu no contexto da Operação Verão — deflagrada após a morte do policial militar Samuel, enquanto ele fazia uma incursão em Santos. O objetivo, segundo o governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos), era localizar o responsável pela morte do PM. O que se viu, no entanto, foram 56 vítimas mortas após o início da operação.

Hildebrando e Davi foram mortos no dia 7 de fevereiro, na casa em que Hildebrando vivia com a família, no bairro Jockei Clube, em Santos. Os policiais do 1º Batalhão de Choque disseram ter partido em diligência após receberem a denúncia de que uma pessoa estaria armazenando armamentos e drogas. Todos os agentes estavam com câmeras corporais, mas os equipamentos de Nielson e Tiago estavam descarregados.

Imagem da câmera de um dos PMs que participou da ação registrou momento em que ele via imagens de suspeito de matar o policial Samuel Cosmo | Foto: Reprodução

Segundo o MP, diferente do que alegaram, os PMs foram até a casa de Hildebrando à procura de Kaique Coutinho do Nascimento, mais conhecido como Chip. Kaique era o principal suspeito de matar Samuel Cosmo e estava foragido na ocasião.

Os policiais chegaram ao endereço de Hildebrando ao identificarem a namorada de Chip. A jovem teve um relacionamento anterior com Hildebrando, chegando a morar junto com ele. Apesar de não residir mais ali, aquele endereço constava como sendo o dela.

No trajeto até a casa, os policiais olharam várias fotos de Chip para, segundo o MP, se certificar da pessoa a ser encontrada.

Os agentes entraram na casa sem mandado ou ordem judicial que permitisse aquilo,questionaram sobre o paradeiro de Gabriela e mandaram que os moradores saíssem.

Ação durou oito minutos

A câmera do policial Rodrigo mostrou que ele obstruiu a porta da casa de Hildebrando para que ninguém tivesse acesso ao local, mesmo após os familiares ouvirem disparos vindo de lá dentro.

A ação dos policiais Tiago e Nielson durou oito minutos, o que, para o MP, demostra que não houve agressão feita pelos jovens mortos. Nas imagens das câmaras corporais, é possível ouvir cinco disparos, número que corresponde ao número de tiros que os PMs declararam terem feito.

PM Rodrigo segura porta que ninguém entrasse na casa durante a ação | Foto: Reprodução

“A suposta ameaça sofrida pelos acusados não justifica ação de alegado revide que dure vários minutos dentro de um local  confinado. O cômodo onde os fatos se deram é minúsculo e a presença de outra pessoa que representasse ameaça seria imediatamente identificada”, destacaram os promotores.

Por meio de câmeras corporais, o MP identificou que várias equipes da ROTA patrulhavam as imediações enquanto os PMs estavam dentro da residência.

Morto sem saber o que aconteceu

Outro elemento apontado pelo MP é o fato de Hildebrando ter cegueira (com apenas 20% de eficiência visual) e não usar lentes adaptativas. Assim, a capacidade de o jovem enxergar de maneira clara e com nitidez era baixa, o que torna improvável a cena descrita pelos PMs de que ele teria apontado uma arma.

Hildebrando foi ferido com dois tiros disparados a distâncias de 50 a 70 centímetros — o que o jovem sequer conseguiu enxergar, já que a zona de visão dele era em um raio de 30 centímetros. “Hilderbrando foi alvejado sem saber o que acontecia”, escreveram os promotores.

A posição em que um dos tiros atingiu o jovem também indicou, segundo o MP, que ele provavelmente estava com o braço levantado, em movimento de defesa ou rendição. Davi também foi morto com tiros a curta distância. Os disparos atingiram a região torácica e abdominal do jovem.

Simulação

Cinco minutos após o último tiro, o policial Nielson saiu do cômodo onde os jovens foram atingidos e alegou ter sido baleado, afirma o MP. O PM Diego procurou por ferimentos no colega, que eram inexistentes. A mãe de Hildebrando viu a cena e disse que seria impossível o jovem atirar, já que não enxergava.

Outro ato de simulação foi feito pelo capitão Tiago. Depois de disparar, ele saiu do cômodo sem arma nenhuma e foi até a viatura para solicitar socorro e informar sobre a ocorrência. Nielson também deixou o cômodo sem armas.

O policial Nielson aparece segurando pistolas que PMs tentaram atribuir aos jovens mortos | Foto: Reprodução

Para os promotores, a conduta dos PMs é contrária à rotina policial, já que a primeira atividade dos agentes seria retirar a arma que está com o suposto agressor para não permitir que ele acesse o equipamento. Por cerca de um minuto, os jovens ficaram sozinhos na casa, ainda com vida, apesar de feridos.

Nielson surgiu com duas pistolas depois de ir até a viatura. Imagens das câmeras do policial Rodrigo mostram o PM segurando os armamentos já dentro da casa de Hildebrando.

“Não bastassem o acusado Nielson fingir ter se ferido e o aparecimento de 02 (duas) pistolas em circunstâncias obscuras, de uma pessoa que sequer tinha capacidade visual para manuseá-las, o terceiro ato de dissimulação foi montado, para permitir o encontro de um fuzil, embaixo da cama do ofendido Hilderbrando”, disseram os promotores.

Fuzil na cama

Davi e Hildebrando foram socorridos e levados a hospitais cerca de 30 minutos após os disparos. Com a liberação do cômodo, policiais militares foram vistos em frente à cama, onde horas depois teria sido localizado um fuzil.

Outras equipes da ROTA foram ao local em apoio à ocorrência. Segundo o MP, os agentes agiram para que nenhuma das câmeras registrasse o quarto onde a ação ocorreu. Alguns dos policiais chegaram a deixar os equipamentos nos bancos das viaturas.

PM não identificado aparece no quarto de Hildebrando | Foto: Reprodução

Essa ação descumpre a diretriz PM3-001/02/22, que prevê que o aparelho deve estar desobstruído e veda atitudes que prejudiquem a captação de imagens. A entrada do quarto chegou a ser bloqueada com um tapume, impedindo a visão de quem estava do lado de fora.

Contudo, a COP de um policial que estava do lado de fora flagrou o momento em que o policial entra no local e vai na direção da cama. Esse policial não foi identificado e não foi possível saber se estava com a câmera carregada. Três horas após os disparos, “com bloqueio de câmeras corporais, descarregamento de baterias e obstrução da visão externa da cena”, foi feita uma vistoria no local, momento em que foi encontrado o fuzil.

Versão dos policiais

A versão dos policiais é que, ao entrar no cômodo onde estavam os jovens, Hildebrando supostamente teria apontado uma pistola contra os agentes. Como revide, Tiago fez dois disparos com um fuzil e Nielson um com uma pistola. Com Hildebrando já ferido, os policiais teriam visto Davi, supostamente armado. Mais uma vez, os policiais atiraram, cada um uma vez.

Enquanto os policiais estavam na delegacia apresentando o caso, outra equipe encontrou um fuzil embaixo de uma cama na residência.

A Ponte não localizou a defesa dos policiais militares citados. A Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP-SP) foi acionada pela reportagem, mas não respondeu até a publicação.

Afastamento

Além da denúncia, o MP também pediu o afastamento da atividade externa dos dois policiais envolvidos nas mortes, “pois há justo receio de sua utilização para a prática de outras infrações penais”. Os promotores justificam que a ROTA, onde a dupla atua, “tem grande probabilidade de envolvimento em ocorrências que resultam em emprego de força potencialmente letal”.

Por tal motivo, se continuarem a trabalhar, “é provável que os denunciados se envolvam em outra morte decorrente de intervenção policial (MDIP) e, como já visto, prejudiquem a colheita de provas, comprometendo a investigação”.

O que dizem as autoridades

A Ponte procurou a SSP-SP solicitando entrevista com um porta-voz e com os policiais militares citados. Também foi pedida uma manifestação da pasta diante dos fatos revelados pela investigação. Não houve retorno até a publicação da reportagem — caso haja, a matéria será atualizada.

Por Ultima Hora em 05/02/2025
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