A Suprema Corte Norte Americana e o Sistema de Cotas Raciais

A Suprema Corte Norte Americana e o Sistema de Cotas Raciais

Por Marcelo Silva Moreira Marques - Doutorando em Direito Público da Universidade de Coimbra em Portugal. Ex Procurador Geral do Município do Rio de Janeiro.

No julgamento de dois casos (Students for Fair Admissions x University of North Carolina e Students for Fair Admissions x  President and Fellows of Harvard College), mais exatamente no dia 29 de junho de 2023, por maioria de votos (6 a 3), a Suprema Corte dos Estados Unidos da América, equivalente, no Brasil, ao Supremo Tribunal Federal, decidiu que universidades norte-americanas não mais poderão usar o critério de raça para selecionar candidatos durante os processos seletivos para ingresso.

No referido julgamento, os ministros avaliaram dois casos que contestaram a constitucionalidade dos programas de admissão da Universidade Harvard e da Universidade da Carolina do Norte, cujos processos seletivos respectivos levavam em conta a raça dos candidatos.

Os demandantes argumentaram que o sistema seletivo das supracitadas universidades resulta em discriminação racial e prejudica estudantes asiáticos e brancos, que estariam perdendo vagas para candidatos que consideram menos qualificados.

O presidente da Suprema Corte, ministro John Roberts (que é conservador), foi o relator do voto da maioria. Outros três ministros conservadores, Clarence Thomas, Neil Gorsuch e Brett Kavanaugh, escreveram votos concorrentes. E os outros dois ministros conservadores, Samuel Alito e Amy Barrett, apenas aderiram ao voto do relator.

A ministra liberal Sonia Sotomayor escreveu o voto dissidente principal, ao qual aderiram as ministras, também liberais, Ketanji Brown Jackson e Elena Kagan. A ministra Ketanji escreveu um voto dissidente separado.

Roberts escreveu, no voto da maioria, que a Constituição e a lei dos direitos civis proíbem as faculdades e universidades de darem prioridades as minorias raciais. Roberts se referiu à 14ª Emenda da Constituição, ratificada após a Guerra Civil para garantir a proteção igual da lei aos negros libertados, e à Lei dos Direitos Civis de 1964.

Mas ele acrescentou que essa legislação também proíbe a discriminação com o propósito de elevar as pessoas que integram grupos em desvantagem (na sociedade). "Eliminar a discriminação racial significa eliminá-la por completo", asseverou Roberts.

O Presidente da Suprema Corte, Ministro John Roberts, disse que por muito tempo as universidades “concluíram, erroneamente, que a pedra de toque da identidade de um indivíduo não são os desafios superados, as habilidades construídas ou as lições aprendidas, mas a cor de sua pele. Nossa história constitucional não tolera essa escolha”.

Roberts prosseguiu na assertiva: "Assim, a corte decide que a cláusula da proteção da igualdade perante a lei, que deve ser aplicada sem consideração a qualquer diferença de raça, cor ou nacionalidade, é universal em sua aplicação. A garantia de proteção da igualdade não pode significar uma coisa, quando aplicada a uma pessoa, e outra coisa diferente, quando aplicada a uma pessoa de outra cor".

No entanto, Roberts fez uma ressalva: "Nada nesta decisão deve ser interpretado como uma proibição às universidades de levar em consideração uma discussão do candidato sobre como a raça afetou sua vida, seja através da discriminação, da inspiração ou de qualquer outro motivo".

Dois Ministros da Suprema Corte Americana, quem sejam, Clarence Thomas e Sonia Sotomayor, que foram beneficiados pelas políticas afirmativas de raça, tiveram posições distintas quando do julgamento em questão.

O Ministro Thomas asseverou que tratar pessoas diferentes com base na raça é sinônimo de opressão. Em sentido diverso, a Ministra Sotomayor prescreveu em seu voto que ignorar a desigualdade racial não fará com que ela desapareça.

O ministro Clarence Thomas escreveu em seu voto separado que a "ação afirmativa gera um estigma contra as minorias que alcançam sucesso em suas carreiras profissionais, com a especulação de que são bem-sucedidos devido a favoritismo, e não a mérito”.

Para Thomas, as políticas das universidades de buscar diversidade racial resulta em uma incompatibilidade entre os candidatos de minorias e as escolas, porque tais estudantes são aceitos por uma instituição onde o mau desempenho é inaceitável, mas se torna inevitável.

O ministro, que ingressou na universidade pelo caminho da "ação afirmativa", já havia criticado essa política anteriormente, quando escreveu, segundo o Washington Post: "A ação afirmativa tornou meu diploma da Faculdade de Yale praticamente imprestável. O paternalismo racial pode ser tão venenoso e pernicioso como qualquer outra forma de discriminação".

Em seu voto, Thomas escreveu: "Apesar de estar dolorosamente consciente da devastação social e econômica que recaiu sobre minha raça e sobre todos que sofrem discriminação, a Constituição é daltônica — não distingue cores".

Por outro lado, a Ministra Sonia Sotomayor afirmou que a decisão representou um retrocesso de 45 anos na jurisprudência que objetivava promover a inclusão e igualdade nas universidades.

A ministra Sonia Sotomayor escreveu que os três ministros negros da Suprema Corte — ela, a única latina do colegiado, Thomas e Ketanji Brown Jackson — "se formaram em universidades e faculdades de Direito de elite, graças a programas de admissão conscientes de raça, apesar de terem antecedentes educacionais diferentes de seus colegas".

Ela escreveu em seu voto que uma característica perturbadora da decisão da maioria é a de que "sequer foi feita uma tentativa de apresentar a extraordinária prova requerida para reverter precedentes". E argumentou que "a oportunidade educacional igual é um pré-requisito para se alcançar a igualdade racial no país".

E continuou a prescrever em seu voto: "Com essa decisão, a corte interrompe o progresso e reverte décadas de precedentes por impedir que a raça não possa mais ser usada, de maneira limitada, na admissão de candidatos nas universidades, o que sempre resultou em benefícios fundamentais para o país.".

E concluiu, sem síntese: "Ao tomar essa decisão, a corte cimenta uma regra superficial de daltonismo como um princípio constitucional, em uma sociedade endemicamente segregada, na qual a raça sempre teve importância e continua a ter. A decisão aprofunda a desigualdade racial, ao tornar esse canal para papéis de liderança menos diversificado", argumento ela.

A ministra Ketanji Brown Jackson rebateu a maioria: "A resposta (a esse argumento) é simples: nosso país nunca foi daltônico. Considerar que a raça é irrelevante na lei não torna a raça irrelevante na vida". Ela considerou a decisão da maioria "uma tragédia para todos nós".

"Em vista da longa história de preferências baseadas em raça, patrocinadas pelo Estado, dizer agora que alguém é vitimizado se uma universidade considera o legado de discriminação a favor de alguns candidatos é uma falha no reconhecimento da bem-documentada transmissão, por várias gerações, da desigualdade que ainda é uma praga na coletividade de cidadãos", diz Brown seu voto.

"Os programas de admissão das universidades lidam exatamente com essa desigualdade. Mas a decisão da maioria tolhe o progresso dessa política, sem qualquer base na lei, na história, na lógica ou na Justiça", ela escreveu.

A Associated Press- NORC Center for Public Affair Research divulgou recente pesquisa na qual dois terços dos adultos americanos pensam que a Suprema Corte Americana deveria não apenas continuar permitir a consideração da raça nos processos seletivos, mas também ampliar para outros critérios objetivamente aferíveis como as notas.

Por sua vez, o Harvard-Radcliffe Asian American Association demonstrou contrariedade ao grupo Students for Fair Admissions, e apontou que a decisão promoverá a perda de quase metade dos alunos negros, latinos, indígenas e das ilhas do Pacífico em Harvard, o que prejudicará os membros mais vulneráveis da sociedade americana.

Qual a sua opinião sobre a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos da América? Deixe seu comentário no meu linkedin[1], onde este artigo também será publicado.

Estamos preparando um novo artigo que irá fazer um estudo de direito comparado acerca da temática em questão à luz da jurisprudência de outras relevantes cortes constitucionais pelo mundo, inclusive do Supremo Tribunal Federal Brasileiro.

[1] https://www.linkedin.com/in/marcelo-silva-moreira-marques

 

Por Ultima Hora em 20/11/2024
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