Câmara de Vereadores de Itaperuna vai manter a leitura da Bíblia de forma obrigatória, MPERJ vai precisar de decisão Judicial para barrar

Câmara de Vereadores de Itaperuna vai manter a leitura da Bíblia de forma obrigatória, MPERJ vai precisar de decisão Judicial para barrar

A Câmara Municipal de Itaperuna desafiou uma recomendação do MP RJ, e decidiu que vai manter leitura da Bíblia no início da sessão da Câmara, até uma decisão de um juiz.

Um eleitor de Itaperuna, ateu, entra na justiça para impedir citação do nome de Deus e leitura Bíblica na Câmara de Itaperuna, mas o Presidente da Câmara diz que vai manter os artigos no Regimento Interno da Câmara, mesmo sendo inconstitucional, por orientação do Procurador e vão enfrentar a justiça, com todos os recursos possíveis.

Assista o Presidente da Câmara Municipal expondo o assunto

Veja os artigos do Regimento que devem ser adaptados a Constituição Federal, que prevê o estado Laico:

... Art. 101 – Para a abertura das sessões da Câmara, o Presidente usará sempre da seguinte frase invocatória: “Sob a proteção de Deus e em nome do povo de Itaperuna, iniciamos os nossos trabalhos”.

Art. 104 - a hora do início dos trabalhos, feita a chamada do Vereadores pelo 1º secretário, o Presidente, havendo número legal, declarará aberta a sessão, e convidará um Vereador, à sua escolha, para a leitura de um Versículo da Bíblia Sagrada.

O vereador Glauber Bastos em sua redes sociais declarou apoio a decisão do Presidente da Câmara e disse que tem coisas mais importantes para a Câmara e o Ministério Público cuidar.

Assista o vídeo do vereador dizendo que é contra a recomendação do Ministério Público

Leia a representação de Eduardo Banks na Íntegra

O Brasil apesar de maioria cristã, é um um país Laico.

A Constituição Federal de 1988, em consonância com tratados internacionais e com o verdadeiro sentido de Democracia, mostra-se avessa a qualquer tendência que importe em imposição de silêncio a qualquer que seja a corrente de pensamento. O que a Lei Maior prescreve é a não existência de religião oficial. Não se privilegia uma religião. Assim, já no seu Preâmbulo, institui um Estado assegurador da liberdade, da igualdade e da justiça como seus valores supremos, para a formação de uma sociedade pluralista e alicerçada na harmonia social. No ensinamento de José Scampini, “o conteúdo da liberdade religiosa não é a verdade religiosa, é a imunidade de qualquer coação externa, enquanto o fundamento da liberdade religiosa é a dignidade humana” (SCAMPINI, 1974).

O Preâmbulo, por si só, já evidencia o zelo do legislador constituinte em proteger as liberdades fundamentais. A participação de religiosos na exposição de suas ideias sobre assuntos polêmicos não representa intromissão da igreja nas questões de Estado, mas se traduz em cooperação na formulação de políticas que produzirão efeitos sobre todos os membros da sociedade.

Outros princípios de grande espectro compõem também o arcabouço de nosso ordenamento constitucional para delinear o perfil de nossa organização política e jurídica.

O art. 3º arrola, como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, a promoção do bem de todos, “sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. (inciso IV). Entre as outras formas de discriminação se insere, naturalmente, todo e qualquer impedimento à livre manifestação do pensamento.

O caput do art. 5º consagra o princípio cardeal da ordem democrática, o princípio da igualdade, fundamento maior do Estado de Direito. O inciso IV protege a liberdade de pensamento. De acordo com o inciso VI, “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.

Pelo inciso IX, “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.

Como proteção aos direitos assegurados, “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” (inciso XLI).

Finalmente, o § 2º do art. 5º pontifica que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

O caráter do Estado laico vincula-se a tais princípios de grande porte, que fundamentam o Estado de Direito. Ao falar-se em Estado laico, acaba-se falando também em garantias fundamentais, em proteção dos direitos humanos, em sociedade pluralista, em proteção à dignidade da pessoa humana, em consolidação da cidadania, enfim, em todos os temas constitucionais de grande alcance que se relacionam com o assunto.

Estado laico significa que o ordenamento jurídico de um país não pode se vincular a nenhum credo religioso, mas não significa que as diversas filosofias não possam se expressar sobre os assuntos postos à discussão na comunidade nacional. Ao contrário, justamente porque o Estado é laico, sem determinada religião oficial, as várias posições filosóficas, espirituais ou não, religiosas ou agnósticas, podem e devem ser consideradas, sob pena de ferimento aos princípios cardeais de nossa Constituição Federal que, no seu Preâmbulo, institui o Estado democrático brasileiro destinado a assegurar, entre outros, os valores de uma sociedade pluralista, fundada na harmonia social.

Cite-se, ainda, o princípio magno que garante a liberdade de expressão para todos, independentemente de crença, e que constitui cláusula pétrea nem mesmo passível de emenda.

Característica marcante do Estado laico é a sua imparcialidade, da qual decorre o fato de que não é dado ao Estado nem apoiar nem dificultar a difusão das ideias religiosas. Se houver apoio, estará privilegiando determinado credo, e, portanto, estará ferindo a Constituição. Se impuser obstáculo, estará igualmente ferindo a Constituição, por afronta à plena liberdade de manifestação do pensamento.

Diante disso, pensamos plenamente protegida pela Constituição Federal e pelos tratados internacionais a aceitação da presença dos representantes das organizações religiosas nos debates levados a público para o esclarecimento dos diversos temas a serem discutidos e eventualmente aprovados pelas instituições públicas, legislativas ou executivas.

Comumente se opina pela rejeição da presença de tais representantes nessas discussões, sob o argumento da laicidade do Estado. Entretanto, com base nas garantias fundamentais que alicerçam o Estado de Direito, insculpidos nas Constituições e nos tratados internacionais, e no verdadeiro conceito de Estado laico, acima exposto, não resta dúvida de que a proteção dos direitos humanos, especificamente a liberdade, repele todo e qualquer cerceamento à proteção do direito à liberdade religiosa, que a nosso ver não inclui apenas o direito de o cidadão escolher sua própria religião, professá-la em público, mas também agir como partícipe da comunidade na expressão de suas ideias, diretamente, ou por meio dos representantes de sua igreja. Ressalte-se a grande cooperação dada à sociedade por parte dessas instituições, sobretudo no campo educacional.

Citamos, como exemplo eloquente da possibilidade de coexistência pacífica e produtiva dos vários credos e direções de pensamento, a civilização da Espanha medieval, mais precisamente a história de Andaluzia (Al-Andaluz) entre 786 e 1492. Scott Fitzgerald referiu­se a esse período como momento cultural de “primeira categoria”, quando judeus, cristãos e mulçumanos vivenciaram uma verdadeira cultura de tolerância e que, por isso mesmo, propiciaram magnífico florescimento das ciências e das artes, marcando profundamente a história e a civilização europeias.

Sobre essa brilhante etapa da história, recomendamos a leitura da obra O Ornamento do Mundo, na qual sua autora, María Rosa Menocal, ensina:

A essência de uma concepção de cultura como uma série de contrários encontra-se em Al-Andaluz (...). Foi lá que judeus profundamente “arabizados” redescobriram e reinventaram o hebraico; foi lá que cristãos adotaram praticamente todas as características do estilo árabe (...). Foi lá que homens de fé inabalável não viram contradição alguma na busca da verdade – fosse ela filosófica, científica ou religiosa – através dos caminhos da religião. Essa visão de uma cultura de tolerância reconhecia que as incongruências existentes entre indivíduos e culturas são enriquecedoras e fecundas. (MENOCAL, 2004, p. 26).

Logicamente, a simples expressão dos conceitos religiosos ao opinar sobre determinados temas não terá caráter vinculativo. Por isso mesmo, não há argumento que possa justificar o afastamento desse segmento da comunidade nos debates públicos, até porque a comunidade brasileira religiosa certamente gostaria de se ver representada pelos ministros de suas religiões. Parece-nos, portanto, de grande sentido democrático a inclusão nos debates de representantes de todas as correntes de pensamento, sem exceção, para que a liberdade de expressão religiosa se mostre plenamente eficaz.

A eficácia, um dos pilares básicos sobre os quais uma lei se assenta, revela-se quando a norma apresenta condições de aplicabilidade, podendo produzir concretamente seus efeitos legais.

A eficácia diz respeito às condições fáticas, axiológicas e técnicas da atuação da norma jurídica. A eficácia vem a ser a qualidade do preceito normativo vigente de produzir efeitos jurídicos concretos, supondo não só a questão da sua condição técnica de aplicação, observância ou não, pelas pessoas a quem se dirige, mas também de sua adequação em face da realidade social por ele disciplinada, e aos valores vigentes nessa sociedade. A análise eficacial importará em se saber se os destinatários da norma ajustam, ou não, seu comportamento às prescrições normativas, aplicando-as, ou não. (FERRAZ JUNIOR; DINIZ; GEORGAKILAS, 1988).

Torna-se ineficaz a liberdade de expressão religiosa concedida em sede constitucional sem a possibilidade de expressão do pensamento religioso em qualquer que seja a situação. Sociedade pluralista é sociedade inclusiva, que respeita e ouve as diversas opiniões, sem impor o silêncio a nenhum segmento, o que pode redundar em autoritarismo e desrespeito às cláusulas pétreas firmadas no art. 5º da Constituição Federal.

A Constituição brasileira atual reforçou a laicidade do Estado, já consagrada desde a Constituição Republicana. A Constituição de 1988, ao mesmo tempo em que consolidou a laicidade, sedimentou com maior afinco os ideais de construção de uma sociedade pluralista, em que as diversas orientações e opiniões devem ser consideradas e respeitadas. Esses dois lados da questão, longe de traduzirem contradição, expressam coerência e fidelidade ao verdadeiro conceito de Estado laico.

Aqui, cabe a ponderação de que a legislação deve ser vista como um todo lógico, em que os princípios se coordenam para formar um conjunto coerente e harmônico. As contradições são aparentes e, na interpretação das leis, há que se atentar para a realidade já conhecida de que o direito não contém antinomias. Não há direito contra direito, e os direitos dos cidadãos agnósticos podem conviver com o direito, igualmente protegido pela Lei Maior, de os indivíduos religiosos nutrirem e expressarem seus pensamentos e crenças, sob pena de prejuízo às bases de nosso constitucionalismo.

Noticia-se a proibição do uso de vestimentas ou símbolos religiosos pelos alunos em algumas escolas do exterior, numa clara afronta a direito fundamental. Certamente num Estado laico as escolas públicas não podem ser confessionais. Mas a utilização dos símbolos religiosos por parte do corpo discente ou docente em nada desconsidera o caráter não confessional dessas escolas. Apenas ressalta a natureza de um Estado pluralista e democrático, que concilia a diversidade com a tolerância, aberto a todo e qualquer tipo de expressão, desde que dentro da ética e do bom senso, e desde que a expressão religiosa não resulte em ofensa ao Direito.

A análise da questão em estudo não pode ser levada a termo sem que se considerem os mais importantes princípios que sedimentam o nosso sistema jurídico e político. Entre esses, destaca-se o princípio da igualdade como o mais proeminente, e por isso mesmo gravado já no caput do art. 5º, e que

não corresponde a uma norma igual em eminência a outra qualquer, ou mesmos aos outros princípios constitucionais. A análise de seu conteúdo revelará a sua insigne posição, que realça decisivamente o significado normativo, em comparação com os outros princípios e normas constitucionais (...). Pois bem, na região dos princípios constitucionais observa-se essa hierarquia também entre as normas princípios. Porque não é aleatoriamente que o art. 5º, caput, da Constituição de 1988 enuncia a isonomia antes da discriminação dos direitos e garantias fundamentais que ele próprio institui. Dessa posição, ‘topograficamente’ eminente da isonomia, resulta uma proeminência substancial desse princípio. (BORGES, 1997, p. 311-312).

A sociedade pluralista, fundada nos princípios da harmonia social, clama pela isonomia na expressão das diversas tendências de pensamento, sob pena de ferimento ao princípio consubstanciado no caput do art. 5º.

Importa lembrar, aqui, que a isonomia constitui um dos princípios magnos que estão acima do Estado, anteriores ao Estado, o qual não faz mais que assegurá-los. No pensamento de Pontes de Miranda,

direitos fundamentais valem perante o Estado, e não pelo acidente da regra constitucional. São concepções de proteção, e não de existência de tais direitos. A sua essência, a sua supra-estatalidade é inorganizável pelo Estado. O que é organizável é a proteção jurídica (...). Os direitos supra-estatais não existem conforme os cria ou regula a lei; existem a despeito das leis que os pretendam modificar ou conceituar. Não resultam das leis: precedem-nas; não têm o conteúdo que elas lhes dão, recebem-no do direito das gentes. (...) O conceito de igualdade é a priori, preexiste como dado lógico à feitura das Constituições. (PONTES DE MIRANDA, 1967, t. IV, p. 621, 629 e 630).

O princípio da igualdade fica desatendido se o conceito de Estado laico servir de alegação para a imposição do silêncio àqueles que querem expressar seus pontos de vistas levando em conta suas posições filosóficas. Ao contrário, o Estado deve proteger esse direito, protegendo, assim, a sociedade pluralista, fundada na harmonia social. Jorge Miranda, no seu Manual de Direito Constitucional, pontifica que:

a liberdade religiosa não consiste apenas em o Estado a ninguém impor qualquer religião ou a ninguém impedir de professar determinada crença. Consiste ainda, por um lado, em o Estado permitir ou propiciar a quem seguir determinada religião o cumprimento dos deveres que dela decorrem (em matéria de culto, de família ou de ensino, por exemplo), em termos razoáveis. (MIRANDA, 2003, p. 409)

Acrescentamos, aqui, o direito de expressar o pensamento, em qualquer circunstância, inclusive nas audiências levadas a efeito pelos poderes constituídos, até porque grande parte da comunidade brasileira gostaria de se ver representada pelos ministros das mais diversas religiões, segundo o credo de cada um. E que é a coletividade senão a razão de ser do Estado? Na busca da conciliação e da correta interpretação entre todos os dispositivos constitucionais, lembrando que o Direito não contém antinomias, apontamos, em consonância com o interesse público, razão de ser do Estado, o parágrafo único do art. 1º da Constituição, segundo o qual “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

Corolário de tal princípio é a soberania popular exercida através do plebiscito e do referendo, entre outros. A possibilidade de realização de plebiscito, abrigada pela Lei Maior, homenageia a consolidação de uma sociedade pluralista, fundada na harmonia social. O que é o plebiscito senão o congraçamento das diversas opiniões, em louvor ao pluralismo? De que forma poder-se-ia impedir, em épocas que antecedem a realização do plebiscito, as reuniões das igrejas conclamando seus adeptos a votarem contra projetos que contradizem os seus postulados?

Assim, parece-nos inócua a proibição da participação, nos debates, das pessoas não agnósticas e ligadas aos vários credos. Importa relembrar que a palavra grega laikos significa “popular” – Estado cujo titular é o povo, conforme o princípio gravado no parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal.

O art. 18 da Declaração dos Direitos do Homem, de forma clara, determina que

[t]odo homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; esse direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.

A própria história da construção do Estado laico nos autoriza a crer que a imposição do pensamento agnóstico e a antiga teocracia são extremos que se tocam. Na Idade Média, o poder civil era totalmente dominado pelo poder da Igreja. O advento do Estado laico surgiu da correta conscientização de que um sistema democrático não poderia coexistir com a intolerância religiosa, que se revelava na hegemonia da Igreja Católica e na condenação dos hereges e dos adeptos de outros credos. De nada valeria a liberdade de crença sem a liberdade de expressão dessa crença.

Pois bem. Os mesmos argumentos que levaram à consolidação do Estado laico evidenciam fartamente o equívoco que se desponta quando uma coletividade rejeita a consideração das diversas tendências de pensamento na análise de questões que vão influir em todo o grupo social. Em tempos idos, vigorava a intolerância religiosa. No extinto regime soviético, imperava a ditadura do pensamento ateu. Ambas as situações são faces da mesma moeda. No regime verdadeiramente democrático, as duas vertentes de pensamento podem conviver em harmonia, com liberdade, mas há que se considerar a liberdade de forma plena, sem nenhum tipo de entrave, quer num caso quer no outro.

Alega-se que argumentos religiosos não poderiam respaldar o ordenamento jurídico de um Estado laico, razão por que feriria a essência do Estado brasileiro a participação dos representantes das entidades religiosas nos debates. Neste passo, desejamos ressaltar que, tanto por parte dos religiosos quanto por parte dos agnósticos e dos ateus, as posições filosóficas de cada um vão inevitavelmente influenciar as análises das questões levadas a efeito. Recorde-se que o debate é apenas a fase que antecede a formulação das políticas públicas e das leis, e portanto deve ser aberto a toda e qualquer tendência de pensamento.

Além disso, os argumentos comumente utilizados pelos cidadãos religiosos ao se posicionarem sobre algumas questões polêmicas não são necessariamente ligados à religião. Sempre há, entre eles, apreciações de caráter jurídico ou de mérito, ao lado dos motivos filosóficos. Citemos, como exemplo eloquente de divergências entre uns e outros, a discussão sobre a legalização do aborto no País.

Nos debates levados a efeito pelas emissoras de televisão, em que participam pessoas das várias correntes filosóficas, ouve-se com frequência alegações de natureza jurídica por parte dos padres, pastores e outros representantes, uma das quais diz respeito à independência entre o corpo da mulher e o corpo do feto, após a concepção. A partir daí, de acordo com eles, o feto já é uma individualidade biológica, não pertencente ao corpo feminino. Muito citado é o art. 2º do Código Civil, que reza que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, dos direitos do nascituro”.

Muito levantado também é o princípio fundamental do direito à vida, para defender a rejeição à legalização do aborto, princípio que não se mostra aberto a exceções no texto da Constituição Federal. O princípio da igualdade também é muito citado, com a ideia de que a possibilidade de retirada da vida do feto, ser vivo e ainda totalmente indefeso, discrimina-o em relação dos indivíduos já nascidos.

Entre religiosos ou não, são apresentados também argumentos de mérito, necessários para estruturar a legislação de um país, com vistas a verificar se as alterações propostas às leis vão trazer benefícios ao corpo social. Bastante utilizada é a ideia de que o aborto, ainda que feito dentro das melhores condições de saúde e higiene, traz graves prejuízos à mulher, tanto no aspecto físico como no psicológico. Comumente informa-se também que, nos países onde é permitida, a prática do aborto é maior do que nos países onde ela é vedada. Muitos ponderam que a legalização não beneficiaria a mulher, que iria carregar o ônus de se submeter à tensão da cirurgia, ou de ficar com sequelas psicológicas por toda a vida.

Rebate-se, por outro lado, o argumento de que a legalização evitará mortes por abortos feitos clandestinamente, com a opinião de que os hospitais públicos não terão condições de atender a mais essa demanda, quando nem mesmo conseguem dar conta do atendimento, no devido tempo, às pessoas com doenças muito graves. Assim, a legalização representaria uma aparente resolução do problema. A solução, segundo muitos, seria a promoção de uma campanha de valorização da maternidade, de educação nas escolas com vistas a promover uma visão responsável da sexualidade, entre outras coisas.

Cremos, portanto, que todos os segmentos, em um Estado dito laico, possuem preciosas colaborações para a reflexão sobre os diversos temas.

Citamos as diversas ideias levadas a efeito nas discussões sobre a legalização do aborto não para discorrer sobre a conveniência ou não da legalização, que não é nosso objetivo aqui, mas apenas para evidenciar que os segmentos religiosos da população buscam defender ideias não necessariamente associadas à religião, assim como, entre muitos agnósticos e ateus, há os que sustentam a opinião de que a vida começa no momento da concepção.

No ensinamento de Bastos e Meyer-Pflug (2001), a liberdade religiosa e de consciência consiste também “em o Estado permitir ou propiciar a quem seguir determinada religião o cumprimento dos deveres que dela decorrem (em matéria de culto, de família e de ensino, por exemplo) em termos razoáveis” (BASTOS; MEYER-PFLUG, 2001, p. 109). Na fase de discussão dos projetos sob apreciação nos Parlamentos, é plenamente defensável, portanto, que os congressistas levem em conta suas convicções filosóficas, aí incluídos seus deveres para com as religiões que professam, até porque eles estão compromissados com aqueles que o elegeram considerando suas ideias e promessas. É importante ressaltar que os parlamentares são eleitos e não nomeados, e dessa forma eles devem satisfação aos seus eleitores segundo o que foi prometido antes das urnas. O perfil de pensamento de cada um sempre exerce influência sobre o eleitorado na hora da decisão sobre a escolha do postulante a cargo eletivo.

Outra questão muito discutida é a utilização dos símbolos religiosos nas repartições públicas e a inscrição, no Preâmbulo da Constituição, da expressão “sob a proteção de Deus”.

Com relação ao Preâmbulo, argumenta-se que a expressão ali contida estaria a externar uma diretriz religiosa, inaceitável em um Estado de caráter laico. Portanto, o legislador constituinte deveria tê-la excluído, por coerência com o sistema entre nós adotado.

No nosso entendimento, a expressão em nada se incompatibiliza com a laicidade, sobretudo porque ela não possui força normativa. Se assim fosse, a exclusão da expressão, votada pela maioria dos parlamentares, também seria irregular, porque sua ausência não indicaria propriamente uma neutralidade: tendo sido o Preâmbulo analisado e votado, naturalmente os membros do Legislativo tiveram de se pronunciar sobre a oportunidade de retirá-la ou não. Assim, a exclusão da expressão revelaria uma posição firmada pelos constituintes, avessa a qualquer tipo de sentimento religioso, e não uma neutralidade de pensamento. Lembramos aqui que o ateísmo também não deixa de ser uma crença – a crença na não existência de Deus.

Os parlamentares representam a vontade popular, e não a vontade de algum credo determinado. Se a maioria dos parlamentares tivesse votado pela retirada da expressão, seria essa mesma vontade popular que teria sido respeitada e homenageada, e nem por isso os cidadãos religiosos poderiam revelar descontentamento, porque os trabalhos da Assembleia Constituinte resultaram de votações feitas por congressistas eleitos, e não nomeados.

Certamente a inclusão da expressão atendeu à tradição do povo brasileiro, ao seu caráter cultural, que não pode ser olvidado pelos nossos representantes. Repita-se, ainda, que a ausência da expressão não estaria a indicar um Estado neutro, e sim um Estado que não teria por tradição a fé em Deus. De toda forma, nas palavras de Celso Ribeiro Bastos, “do ponto normativo e preceptivo, o preâmbulo não faz parte da Constituição, o que vale dizer que ele não a integra formalmente, visto que os dizeres dele constantes não são dotados de força coercitiva” (BASTOS, 2000, v. 1, p. 454). Embora seja juridicamente relevante, e faça parte da Constituição no sentido material, o Preâmbulo retrata a situação vigente por ocasião da feitura da Constituição; encerra suas linhas mestras, mas não necessita nem de modificação no correr dos tempos. Mesmo que a Lei Maior seja severamente emendada, não há necessidade de modificar seu Preâmbulo. Aqui, vale citar a decisão do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.067/AC, em que a Suprema Corte firmou o entendimento de que o Preâmbulo não possui valor jurídico-normativo, e se situa no domínio da política, sem relevância jurídica.

A citada decisão decorreu de ADIN interposta pelo Partido Social Liberal (PSL) contra a Assembleia Legislativa do Estado do Acre, cuja Constituição não inseriu a expressão “sob a proteção de Deus” no seu Preâmbulo, que figura nos seguintes termos:

A Assembleia Estadual Constituinte, usando dos poderes que foram outorgados pela Constituição Federal, obedecendo o ideário democrático, com o pensamento voltado para o povo e inspirada nos heróis da Revolução Acreana, promulga a seguinte Constituição do Estado do Acre.

No seu relatório, o Sr. Ministro Carlos Velloso lembrou que, na Assembleia Nacional Constituinte, a emenda que suprimia a invocação a Deus foi derrotada por 74 votos, tendo havido somente um voto a favor. Mencionou que o Subprocurador-Geral da República opinou pela improcedência do pedido. Discorreu sobre a questão da reprodução, na Constituição do Estado-membro, de norma da Lei Maior que incidirá sobre a ordem local, tendo ou não sido reproduzida pela Constituição estadual, concluindo que o Preâmbulo da Constituição Federal não se situa no âmbito do Direito, mas no domínio da política, e assim não desponta como norma central da CF, de reprodução obrigatória nas constituições estaduais. O Preâmbulo da Constituição Acreana, segundo o relatório, não dispõe de forma contrária aos princípios consagrados na Constituição Federal. Apenas não invoca a proteção de Deus, que reflete, simplesmente, um sentimento religioso havido por ocasião da sua elaboração.

No nosso entendimento, o Estado laico incompatibilizar-se-ia, isto sim, com dizeres que revelassem preferência a determinada religião. Mas a invocação à proteção de Deus no Preâmbulo, já consagrada desde a Constituição de 1934, revela que não houve solução de continuidade na nossa tradição; além disso, menciona “Deus” e não alguma divindade que poderia caracterizar preferência por determinado credo. Ressalte-se que a invocação a Deus, não tendo força normativa ou jurídica, não obriga os Estados membros a reproduzi-la.

A expressão, objeto de tanta polêmica, não se refere ao caráter do Estado brasileiro. Caso houvesse contradição entre ela e algum dispositivo constitucional, naturalmente prevaleceria o dispositivo, pois este possui força normativa, e aquela diz respeito ao ato de promulgação da Constituição que, pela expectativa e desejo da maioria dos constituintes expressos na votação, ocorreu ‘sob a proteção de Deus’. Tais dizeres não se traduzem em nenhum tipo de obrigação, assim como não impõem obrigações a exposição de símbolos religiosos nas repartições públicas. Os símbolos indicam tradição, e não dever ou impedimento de qualquer natureza.

A existência de crucifixo nos tribunais não indica diretriz de julgamento, até porque seria algo inócuo. Se algum juiz tiver de pautar seu julgamento em sentimentos de simpatia ou aversão religiosa, a existência ou não de símbolos afixados em nada mudará o resultado do julgamento. Neste passo, cabe a ponderação de que as filosofias espirituais estão repletas de conceitos ligados à justiça, à equidade e outras questões. Tomás de Aquino discorre sobre o sentido da verdadeira justiça na sua Suma Teológica, asseverando que “longe de suprimir a justiça, a misericórdia é a plenitude dela”. (Tomo I, Questão XXI). Se um juiz católico levar em conta o pensamento de Aquino nos pontos relativos ao verdadeiro sentido da justiça para embasar sua sentença, ele não estará, por isso, desconsiderando a laicidade do Estado. Muito diferente seria a aceitação, pelo Poder judiciário, da psicografia como prova de inocência ou de culpa do réu. Neste caso, sem dúvida estar-se-ia afrontando a laicidade, pela utilização de expediente estranho ao Direito nos processos judiciais.

Manifesta-se muitas vezes a opinião de que a existência de capela nas repartições públicas iria de encontro ao caráter do Estado brasileiro. No Congresso Nacional há uma pequena capela ecumênica. A construção da capela sem dúvida feriria os princípios constitucionais se a Resolução nº 04 de 2001, que a criou, estabelecesse obrigatoriedade de frequentá-la por parte dos parlamentares e dos servidores. Porém, ela existe para quem quiser ali entrar, sejam congressistas, funcionários ou visitantes das Casas Legislativas.

Citamos, com o intuito de ressaltar a possibilidade de conciliação entre a laicidade do Estado e o atendimento ao caráter pluralista de nossa coletividade, a prestação de serviço religioso nas Forças Armadas. Tal prestação tem como critério respeitar as diversas religiões de acordo com o princípio da proporcionalidade relativa aos credos professados pelos integrantes das três Armas.

De todo o exposto, resumimos a questão do Estado laico enfatizando a necessidade de compreensão de seu verdadeiro sentido, para se evitar equívocos na sua definição, o que em nada coopera com a construção de uma sociedade pluralista e realmente democrática.

Pela história e origem do Estado laico, os motivos que determinaram seu advento são os mesmos que nos levam a defender a coalizão das diversas correntes de pensamento na discussão dos temas polêmicos que devem e deverão ser regulados pela nossa legislação.

O inciso I do art. 19, ao permitir a cooperação de interesse público entre Igreja e Estado, nos conduz à interpretação de que a participação e a colaboração das organizações religiosas nas discussões em nada desconsidera a laicidade do Estado, antes a reforça.

O princípio magno que protege a liberdade de expressão repele qualquer tendência à não aceitação da exposição das diversas opiniões. As ideias conflitantes e divergentes nos debates são saudáveis e enriquecem o sistema democrático, e assim o povo, verdadeiro detentor do poder, ficará mais bem representado nas discussões.

Os princípios que sedimentam o regime democrático, notadamente os princípios da igualdade e da liberdade, correm o risco de ficarem um tanto negligenciados se não houver uma correta interpretação do significado de Estado laico.

A conquista da liberdade de expressão, na qual se insere a liberdade religiosa, processou-se lentamente ao longo da história. Justamente por isso, as instituições políticas e jurídicas devem zelar para que a preciosa liberdade seja amplamente preservada, sem equívocos que possam trazer prejuízos à verdadeira consolidação do Estado de Direito.

Da Editoria Última Hora

Fonte e fotos: Blog do Adilson Ribeiro e redes sociais 

Referências bibliográficas

BASTOS, C.R. Curso de Direito Constitucional. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.

BASTOS, C.R.; MARTINS, I.G. Comentários à Constituição do Brasil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.

BASTOS, C.R.; MEYER-PFLUG, S. Do direito fundamental à liberdade de consciência e de crença. Revista de Direito Constitucional e Internacional, v. 9, nº 36, p. 106-114, 2001.

BORGES, J.S.M. Significação do princípio da isonomia na Constituição de 1988. Revista Amespe/Emaspe, v. 2, nº 3, p. 311-2324, 1997.

FERRAZ JUNIOR, T.S., DINIZ, M.H, GEORGAKILAS. Constituição de 1988, legitimidade, vigência, eficácia e supremacia. São Paulo: Editora Atlas, 1988.

MENOCAL, M.R. O Ornamento do mundo. Rio de Janeiro: Record, 2004.

MIRANDA, J. Manual de Direito Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2003.

PONTES DE MIRANDA. Comentários à Constituição de 1967. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1967.

SCAMPINI, J. A liberdade religiosa nas constituições brasileiras. Revista de Informação Legislativa, v. 11, nº 42, p. 369-430, 1974.

Por Ultima Hora em 06/07/2023
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