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Tensão no Rio: Quando a toga desafiou a farda em defesa das prerrogativas
Em um episódio que remete aos tempos sombrios da ditadura militar, um confronto entre a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Marinha do Brasil no Rio de Janeiro trouxe à tona uma grave crise envolvendo as prerrogativas dos advogados e o suposto abuso de autoridade por parte das Forças Armadas.
O estopim da crise ocorreu na noite de segunda-feira, 14 de janeiro, quando o advogado Adriano Rocha foi preso em flagrante no 1º Distrito Naval do Rio de Janeiro. O motivo? Tentar filmar o momento em que protocolava um documento dentro da unidade militar.
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Segundo relatos, Rocha foi advertido por militares sobre uma ordem interna que proíbe o uso de aparelhos eletrônicos na Força Naval desde 2019. Ao se recusar a parar de usar o celular, o advogado foi detido sob acusação dos supostos crimes de fotografia e filmagem de quartel e desobediência à ordem legal de autoridade militar.
A situação rapidamente escalou, levando a um confronto direto entre representantes da OAB-RJ e oficiais da Marinha. James Walker, presidente da Comissão de Prerrogativas da OAB-RJ, chegou ao local por volta das 4h30 da madrugada de terça-feira, encontrando uma cena que descreveu como "de terror".
"Eu me deparei com uma situação absolutamente insólita, que remete aos tempos da ditadura militar, de extremo autoritarismo e abuso de autoridade", declarou Walker em um vídeo que circulou nas redes sociais.
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O advogado preso relatou ter sido submetido a tratamento degradante, incluindo ter sido impedido de usar o banheiro, resultando em ele urinar nas próprias roupas. "Passei por algumas situações nas quais me senti extremamente humilhado e tive alguns direitos cerceados", afirmou Rocha durante sua audiência de custódia.
A Defensoria Pública da União (DPU) já havia encaminhado um ofício ao Comandante da Força Naval, Almirante Marcos Sampaio Olsen, no dia 8 de janeiro, questionando sobre eventuais violações das prerrogativas da advocacia. O prazo dado para resposta é de 15 dias.
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O incidente levanta questões cruciais sobre o equilíbrio entre segurança nacional e direitos civis, especialmente as prerrogativas dos advogados. A OAB-RJ demonstra uma postura inflexível na defesa desses direitos, mesmo diante de instituições poderosas como as Forças Armadas.
"A OAB já enfrentou essa truculência em outros tempos, e não será agora que nos acovardaremos", afirmou James Walker ao resistir a truculência de oficiais da marinha que queriam levar a força o advogado, sinalizando que a classe advocatícia está pronta para defender seus direitos e os de seus clientes com vigor renovado.
Após mais de 20 horas de tensão, o advogado Adriano Rocha conseguiu liberdade provisória em audiência de custódia realizada na terça-feira, 15 de janeiro. O juiz federal da Justiça Militar, Claudio Amin Miguel, entendeu que não havia requisitos que justificassem a manutenção da prisão.
Este embate serve como um lembrete contundente da importância do Estado de Direito e do papel crucial que instituições como a OAB desempenham na manutenção do equilíbrio democrático, mesmo em situações de alta tensão.
A presidente da OAB-RJ, Ana Tereza Basilio, classificou o desfecho como uma vitória coletiva o resultado da atuação conjunta de colegas advogados e advogadas, sob a condução da Comissão de Prerrogativas da OAB-RJ.
O caso promete desdobramentos nos próximos dias, com a OAB sinalizando que irá denunciar o ocorrido a comissões de Direitos Humanos da Câmara, do Senado e até mesmo a organismos internacionais.
A crise entre a OAB e a Marinha do Brasil não se limita apenas ao incidente com o advogado Adriano Rocha. Segundo a Defensoria Pública da União, há relatos de que advogados têm sido impedidos de usar aparelhos eletrônicos durante audiências e proibidos de gravar atos administrativos nas Organizações Militares.
"Impedir que um ato administrativo seja registrado possibilita o arbítrio", afirmou um dirigente da OAB. "A violação de prerrogativas da advocacia leva ao recrudescimento dos inquéritos e procedimentos administrativos que, de alguma forma, minoram o contraditório e a ampla defesa." expressou.
O episódio também levanta questões sobre a interpretação e aplicação do Código Penal Militar. Parece brincadeira, mas um advogado protocolando um requerimento foi enquadrado no artigo 147, que trata de crimes contra a segurança externa do Brasil. Um crime contra a segurança externa do Brasil porque filmou o próprio rosto e apareceu um pedaço ou outro de uma pequena sala de um quartel onde ele estava realizando um protocolo? Isso é um completo absurdo.
LEI Nº 8.906, DE 4 DE JULHO DE 1994
Prevê a Constituição Federal, em seu art. 133, que: o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.
Todos os membros que atuam em defesa da lei devem ser tratados de forma igual. A eles devem ser prestados o mesmo respeito e consideração. Não existe, portanto, hierarquia entre juízes, membros do Ministério Público, delegados, defensores públicos e advogados. Todos possuem liberdade e autonomia para exercerem suas atividades.
De acordo com o art. 6º da Lei 8.906/94:
Art. 6º Não há hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público, devendo todos tratar-se com consideração e respeito recíprocos.
Parágrafo único. As autoridades, os servidores públicos e os serventuários da justiça devem dispensar ao advogado, no exercício da profissão, tratamento compatível com a dignidade da advocacia e condições adequadas a seu desempenho.
É assegurado ao advogado total inviolabilidade de sua comunicação e de seus documentos. De acordo com o inciso II do art. 7º, Lei 8.906/94:
Art. 7º São direitos do advogado:
II – a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia;[…]
A exceção a esta regra são os casos de mandado de busca e apreensão. Como prevê o parágrafo 6º do artigo 7º, Lei 8.906/94:
§ 6º Presentes indícios de autoria e materialidade da prática de crime por parte de advogado, a autoridade judiciária competente poderá decretar a quebra da inviolabilidade de que trata o inciso II do caput deste artigo, em decisão motivada, expedindo mandado de busca e apreensão, específico e pormenorizado, a ser cumprido na presença de representante da OAB […]
É uma das prerrogativas do advogado poder se comunicar com seu cliente em qualquer situação. Nos casos de clientes presos, o advogado tem a prerrogativa de entrar em contato tanto pessoalmente quanto por cartas, telefonemas, e-mails ou outras formas. Toda troca de informação é protegida pelo sigilo profissional, e a relevância aumenta consideravelmente diante do uso das novas tecnologias na advocacia. Prevê o inciso III do art. 7º, Lei 8.906/94:
III – comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis;[…]
Todo advogado tem acesso livre a cartórios, salas e espaços reservados a autoridades judiciais, mesmo fora dos horários de expediente. Isso significa que nenhum profissional deve ser impedido de acessar secretarias, prisões, delegacias, cartórios e outros espaços.Conforme o inciso VI do art. 7º da Lei 8.906/94, é permitido ao advogado:
VI – ingressar livremente:
a) nas salas de sessões dos tribunais, mesmo além dos cancelos que separam a parte reservada aos magistrados;
b) nas salas e dependências de audiências, secretarias, cartórios, ofícios de justiça, serviços notariais e de registro, e, no caso de delegacias e prisões, mesmo fora da hora de expediente e independentemente da presença de seus titulares;
c) em qualquer edifício ou recinto em que funcione repartição judicial ou outro serviço público onde o advogado deva praticar ato ou colher prova ou informação útil ao exercício da atividade profissional, dentro do expediente ou fora dele, e ser atendido, desde que se ache presente qualquer servidor ou empregado;
d) em qualquer assembléia ou reunião de que participe ou possa participar o seu cliente, ou perante a qual este deva comparecer, desde que munido de poderes especiais;[…]
5. Prisão em flagrante
Caso seja decretada a prisão em flagrante do advogado, é garantido ao profissional a presença de um membro da OAB.De acordo com o inciso IV do artigo 7º da Lei 8.906/94, é prerrogativa do advogado:
V – ter a presença de representante da OAB, quando preso em flagrante, por motivo ligado ao exercício da advocacia, para lavratura do auto respectivo, sob pena de nulidade e, nos demais casos, a comunicação expressa à seccional da OAB;[…]
As hipóteses de prisão em flagrante também são previstas no mesmo artigo, em seu parágrafo 3º. Dispõe-se, assim, que:
§ 3º O advogado somente poderá ser preso em flagrante, por motivo de exercício da profissão, em caso de crime inafiançável, observado o disposto no inciso IV deste artigo.
6. Exercício amplo da defesa
Em juízo, o advogado tem a prerrogativa de esclarecer quaisquer dúvidas ou replicar acusações fazendo o uso da palavra. Da mesma maneira, o advogado pode reclamar contra o desacato à lei, regulamento ou regimento, tanto de forma escrita quanto verbalmente.De acordo com os incisos X e XI do artigo 7º da Lei n.º 8.906/94, contam como prerrogativas do advogado:
X – usar da palavra, pela ordem, em qualquer juízo ou tribunal, mediante intervenção sumária, para esclarecer equívoco ou dúvida surgida em relação a fatos, documentos ou afirmações que influam no julgamento, bem como para replicar acusação ou censura que lhe forem feitas;
XI – reclamar, verbalmente ou por escrito, perante qualquer juízo, tribunal ou autoridade, contra a inobservância de preceito de lei, regulamento ou regimento;[…]
7. Acessibilidade aos processos
Todo advogado tem a prerrogativa de consultar quaisquer processos judiciais ou administrativos em cartórios ou repartições. Também é possível solicitar a vista dos autos sempre que esteja dentro do prazo legal.Citando o inciso XV do art. 7º do Estatuto da Advocacia:
XV – ter vista dos processos judiciais ou administrativos de qualquer natureza, em cartório ou na repartição competente, ou retirá-los pelos prazos legais;[…]
A prerrogativa do advogado de acesso aos autos é válida mesmo para casos em que o profissional não tem procuração ou, ainda, que sejam considerados segredo de justiça. Isso se lê no inciso XVI, reproduzido abaixo:
XVI – retirar autos de processos findos, mesmo sem procuração, pelo prazo de dez dias;[…]
A Súmula vinculante 14 do STF também prevê a prerrogativa do advogado de ter acesso aos elementos de prova para a construção da defesa. Diz o texto:
“É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.”
Nesse sentido, o STF decidiu, em 2016, na Apelação Cível 0031706-35/DF:
“5. O direito do advogado ao acesso a processos ou procedimentos em qualquer órgão dos Poderes Judiciário e Legislativo ou da Administração Pública em geral é assegurado pelo Estatuto da OAB (Lei 8.906/94), no exercício da garantia fundamental do direito ao contraditório e ampla defesa assegurado aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, com os meios e recursos a ela inerentes.”
(CF, art. 5º, inciso LV). Aplicação da Súmula Vinculante 14/STF.
Repercursão do caso
A repercussão do caso já ultrapassou as fronteiras do estado do Rio de Janeiro. O Conselho Federal da OAB foi acionado e deve se manifestar nos próximos dias. Há expectativa de que o caso possa levar a uma discussão mais ampla sobre a necessidade de atualização ou revisão de certas normas militares face às garantias constitucionais e ao exercício da advocacia no século XXI.
Enquanto isso, a Marinha do Brasil ainda não se pronunciou oficialmente sobre o incidente. Fontes ligadas à instituição, que preferiram não se identificar, afirmam que a ordem de proibição de aparelhos eletrônicos visa garantir a segurança das instalações militares e prevenir possíveis vazamentos de informações sensíveis.
O caso também reacendeu o debate sobre a jurisdição da Justiça Militar em tempos de paz. Críticos argumentam que incidentes como esse deveriam ser tratados pela justiça comum.
O desenrolar deste caso promete manter-se no centro das atenções nos próximos dias, com possíveis desdobramentos jurídicos e políticos.
James Walker, em suas últimas declarações, reforçou o compromisso da instituição com a defesa das prerrogativas: "Enquanto eu for presidente da Comissão de Prerrogativas, nenhuma violação ficará sem resposta e/ou enfrentamento. Respeitamos maximamente, mas exigimos igual respeito."
Este episódio serve como um lembrete poderoso da constante necessidade de vigilância para manter o equilíbrio delicado entre segurança nacional e liberdades civis, um debate que continua a moldar a democracia brasileira mais de três décadas após o fim do regime militar.
À medida que o debate se intensifica, fica claro que este incidente vai muito além de um confronto isolado entre um advogado e oficiais da Marinha. Ele toca em questões fundamentais sobre o equilíbrio de poderes, o papel das Forças Armadas em uma democracia moderna e os limites da autoridade estatal frente às garantias constitucionais.
A resolução deste caso e seus desdobramentos podem estabelecer importantes precedentes para o futuro das relações entre a sociedade civil e as instituições militares no Brasil. Enquanto a nação aguarda os próximos capítulos, uma coisa é certa: o debate sobre o delicado equilíbrio entre segurança nacional e liberdades individuais está longe de ser encerrado.
Por Ralph Lichotti - Editor do Ultima Hora
Imagens: AI e Instagram
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