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A legislação eleitoral exige desde 1997 que todo candidato apresente a declaração de bens e valores que compõem o seu patrimônio para concorrer a um mandato. Em tese, a exigência legal torna o processo mais transparente e coíbe o enriquecimento ilícito. Na prática, porém, a realidade é outra: muitos candidatos omitem da Justiça eleitoral imóveis e outras propriedades, impedindo o eleitor de fiscalizar sua evolução patrimonial e abrindo margem para eventuais questionamentos sobre a origem desses recursos.
Considerado atualmente um dos homens mais poderosos da República, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), era um deputado estadual quando pagou, entre 2004 e 2006, quase R$ 5 milhões (valor da época, ou cerca de R$ 16 milhões, em valor atual, conforme correção pelo IGP-M) por quatro fazendas em Pernambuco. Essas propriedades não constam da declaração de bens entregue por ele à Justiça eleitoral em 2006. Os bens declarados por Lira, na ocasião, somavam R$ 695.901,55 (valor da época).
Documentos obtidos pelo portal Congresso em Foco em buscas realizadas em Pernambuco e Alagoas revelam que ao menos R$ 3,7 milhões foram pagos em “moeda corrente” – termo utilizado pelos cartórios, segundo a Associação Nacional dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg), para se referir à moeda do país, no caso, o real. Não há especificação, nos papéis, se o montante foi pago em dinheiro vivo, cheque ou transferência bancária.
Questionado sobre o motivo de não ter declarado esses bens à Justiça eleitoral, Arthur Lira não retornou os contatos feitos com sua assessoria, antes da publicação desta reportagem. Publicada a matéria, a assessoria enviou nota na qual afirma que “todo o patrimônio do deputado Arthur Lira encontra-se devidamente declarado à Receita Federal e à Justiça eleitoral, fruto do sucesso na gestão de sua atividade agropecuária”.
Este site está impedido desde julho de veicular uma entrevista feita com a ex-esposa do deputado. Jullyene Lins, que foi casada com Lira entre 1996 e 2006, acusou o ex-marido de violência física e sexual. O texto foi retirado do ar por determinação do juiz Jayder Ramos de Araújo, da 10ª Vara Cível de Brasília, a pedido do presidente da Câmara. Lira tentou excluir conteúdo semelhante de outros veículos, mas teve o pedido negado. O parlamentar e Jullyene travam, desde a separação, uma guerra na Justiça.
Comprada por R$ 1.901.554,82, a fazenda Pantaneiro foi quitada em cinco parcelas, segundo documento anexado em um processo em que Lira é réu ao qual a reportagem teve acesso. A primeira parcela foi paga em 19 de julho de 2004, no valor de R$ 679.000,00. A última, em 30 de julho de 2005, foi no valor de R$ 253.333,08, conforme recibo de pagamento em nome de Lira.
Antes mesmo de terminar de pagar pela Pantaneiro, o então deputado estadual fez outra aquisição: a fazenda Estrela. Um recibo registrado em cartório, que integra um dos processos em que Lira é réu – e que tramita em segredo de Justiça – mostra que a propriedade foi comprada por ele em 7 de julho de 2005. Pela fazenda, o parlamentar pagou R$ 1.084.000,00, de acordo com o documento, sendo que R$ 150 mil foram entregues no “ato do contrato”.
Uma das parcelas, no valor de R$ 300.000,00, foi quitada com a entrega de um apartamento. O imóvel foi comprado por Lira por meio de uma negociação feita com uma construtora em 31 de julho de 2003, conforme documentos assinados pelo parlamentar obtidos pela reportagem. Os apartamentos ficam no Edifício Mirai, erguido em área nobre de Maceió.
O imóvel nunca apareceu nas declarações de bens do deputado à Justiça eleitoral, apesar de seu advogado à época, Fábio Ferrario, ter afirmado em processo que o apartamento fazia parte de um conjunto de oito unidades recebidas pelo então deputado estadual de uma construtora. Em 10 de abril de 2006, Lira adquiriu a Fazenda Taquari, em Pernambuco, por R$ 1.233.000,00. Uma das parcelas, também no valor de R$ 300 mil, foi quitada com a entrega de um dos apartamentos.
Um terceiro apartamento da construtora também foi usado para quitar parte de outra fazenda comprada pelo presidente da Câmara. Localizada em Quipapá (PE), a fazenda Samambaia teve a compra assinada por Lira em 14 de abril de 2006, apenas quatro dias após ele ter adquirido a Taquari no mesmo estado. Lavrado em cartório, o documento afirma que Lira pagou, “em moeda corrente”, R$ 300.000,00 no ato da assinatura do contrato: “Recebe, neste ato, das mãos do prometido comprador, em moeda corrente, a quantia de R$ 300.000,00. Que contou, achou certo e guardou, dando a este comprador (Arthur Lira), quitação irrevogável desse recebimento”.
Em um processo judicial no qual defendia Lira, Ferrario admitiu, em abril de 2007, que a fazenda Taquari pertencia ao deputado desde antes da eleição de 2006. “Esse imóvel, não se nega, foi indiscutivelmente adquirido pelo senhor Arthur Lira em 10 de abril de 2006”, afirmou o advogado na defesa.
Ferrario é, desde julho de 2022, desembargador do Tribunal de Justiça de Alagoas. Ele ingressou no Tribunal de Justiça de Alagoas pelo critério do Quinto Constitucional, em vaga destinada à indicação feita pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-AL). Procurado pela reportagem, o desembargador disse que é impedido, legalmente, de se manifestar sobre processo por não exercer mais a advocacia.
Em um dos processos aos quais o portal Congresso em Foco teve acesso, o advogado também escreveu, em 2007, que a Samambaia pertencia, então, ao pai de Lira, Benedito de Lira. Ex-senador e ex-deputado federal, Benedito é hoje prefeito de Barra de São Miguel, na região metropolitana de Maceió.
Embora tenham sido compradas antes da eleição de 2006, nenhuma das fazendas apareceu na declaração de bens entregue pelo então deputado estadual à Justiça eleitoral naquele ano. Delas, apenas a Taquari foi declarada – ainda assim, a partir de 2014, quando Lira se elegeu para o segundo mandato de deputado federal.
De acordo com o advogado e ex-juiz eleitoral Márlon Reis, a não declaração de bens por qualquer candidato poderia ensejar a abertura de processo por falsidade ideológica eleitoral. Mas, na prática, o jurista reconhece que essa não tem sido a postura da Justiça brasileira. A exigência de declaração patrimonial está prevista no artigo 350 do Código Eleitoral. “Ele fala de falsidade ideológica eleitoral, o que atinge todas as declarações falsas prestadas à Justiça eleitoral, o que inclui a intimação relativa aos bens”, explica Márlon. “Esse dispositivo, porém, nunca foi utilizado com essa finalidade, infelizmente”, lamenta.
Para ele, a legislação deveria exigir dos candidatos que declarassem à Justiça eleitoral todos os bens informados à Receita Federal, cujos dados hoje são protegidos por sigilo fiscal. “Não há multa prevista para quem deixa de declarar à Justiça eleitoral. Mas a não declaração desses bens à Receita pode ensejar problemas tributários para o candidato”, destaca o ex-juiz, um dos idealizadores da Lei da Ficha Limpa.
A passagem de Arthur Lira pela Assembleia Legislativa de Alagoas foi sacudida pela Operação Taturana, da Polícia Federal, em dezembro de 2007. Cerca de 20 deputados estaduais foram investigados, suspeitos de participar de uma quadrilha que se apropriava de recursos da casa através de sua folha de pagamentos, com a inclusão de funcionários fantasmas e laranjas. Os envolvidos também declaravam à Receita Federal retenções de imposto de renda em valores superiores aos efetivamente retidos, além de se beneficiarem das restituições do IR feitas aos falsos funcionários. As fraudes, segundo a PF, chegavam a R$ 300 milhões (valor da época) no período de cinco anos.
Quando a operação foi deflagrada, Lira já havia deixado o cargo de primeiro-secretário da Mesa Diretora. No capítulo dedicado ao deputado no processo, ele é apontado como um dos beneficiários do esquema de manipulação da folha de pagamento com descontos indevidos de cheques e obtenção fraudulenta de empréstimos consignados.
A Taturana rendeu duas condenações na esfera cível por improbidade administrativa a Lira, em primeira e segunda instância, em 2012 e 2016, respectivamente. Em abril deste ano, o ministro Humberto Martins, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), anulou as condenações, determinando que o processo voltasse à fase inicial em Alagoas. Segundo ele, Lira não foi devidamente comunicado no início da ação para que pudesse exercer o direito de defesa.
No último mês de julho, ele foi absolvido no processo criminal após a anulação da investigação sob a justificativa de que deveria ter sido realizada pela Justiça Estadual, e não pela Federal. A decisão foi do Tribunal de Justiça de Alagoas. O Ministério Público de Alagoas anunciou que vai recorrer ao Superior Tribunal de Justiça.
Formado em direito pela Universidade Federal de Alagoas, Lira começou sua trajetória política em 1992, quando se elegeu vereador pela primeira vez, no rastro do pai, mais conhecido no estado como Bil de Lira. Em 1998, Arthur Lira se elegeu deputado estadual. Na Assembleia Legislativa foram três mandatos até chegar à Câmara, em fevereiro de 2011.
Na Casa, Lira herdou a vaga do pai, que assumia então um mandato de oito anos no Senado. Articulador habilidoso, chegou à presidência da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), a mais importante, e à liderança de seu partido. Com a derrocada do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (MDB-RJ), de quem era um dos aliados mais próximos, despontou como líder do Centrão, bloco partidário informal caracterizado por práticas fisiológicas e clientelistas. Nessa condição, virou aliado do então presidente Jair Bolsonaro e chegou à presidência da Câmara.
Com Lira no poder, Bolsonaro conseguiu escapar das denúncias de impeachment e aprovar projetos de interesse do governo, construindo uma base parlamentar. Ganhou um poder poucas vezes visto na República ao controlar o chamado orçamento secreto, direcionando recursos federais entre aliados. Decretada a derrota de Bolsonaro, telefonou no mesmo instante para o presidente eleito Lula, num gesto saudado por muitos como apreço democrático.
Naquele mesmo instante, no entanto, apresentava suas credenciais ao novo chefe do Executivo. Ajudou a aprovar, antes mesmo da posse, a chamada PEC da Transição, que permitiu ao novo presidente começar o mandato cumprindo promessas sociais. No papel de credor do governo, ganhou o apoio do Planalto em sua reeleição à Câmara. E, agora, vive uma queda de braço com o petista em torno da reforma ministerial e da pauta econômica pendente de votação.
Um dos principais críticos do presidente da Câmara, o deputado Glauber Braga (Psol-RJ) vê com preocupação a relação do governo com o presidente da Câmara. “Lira é um chantagista geral da república. A opção do governo foi por um pacto de conciliação com ele. Só que quem inicia a chantagem, no caso o Lira, sempre quer mais espaço e poder. Se não colocam limites, ele nunca vai se sentir satisfeito com aquilo que recebeu de resposta positiva”, observa. “Ele se impõe também pelo medo, mas pelos recursos oriundos do poder que acumula”, acrescenta. Procurado pelo portal Congresso em Foco para comentar as declarações de Glauber, Lira não quis comentar as declarações do deputado fluminense.
Com informações do Congresso em Foco.
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