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Favelas são conhecidas como as periferias urbanas no Brasil. A imagem delas já deve estar em sua mente: são áreas marginalizadas da sociedade sem investimentos do Estado e sem atendimento às necessidades básicas, como: infraestrutura, saneamento, sistema viário, saúde, educação. Elas também não possuem acesso a Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs). Por que, então, elas são lugares importantes para o estudo de tópicos “avançados” como tecnologia, economia do conhecimento, e práticas sociotécnicas? O que poderiam nos ensinar?
Vista da Favela de São Benedito. Foto por Leandro Recoba.
Pessoas de fora costumam ver moradores de favelas como “indomáveis” e analfabetos digitais. Mas durante oito meses de trabalho etnográfico de campo nas favelas do Brasil, vi pessoas desafiando a noção de “pobreza de recursos”, apropriando-se de TICs e construção de habilidades de maneiras inovadoras. Moradores de favelas se envolvem criticamente com artefatos projetados para contextos industrializados avançados e têm que desenvolver suas habilidades de consertos e improvisos para sobreviver em um ambiente quebrado onde o reparo era uma prática sociotécnica constante. As favelas são consideradas os lugares “errados” para estudar tecnologia porque são periféricas aos principais centros econômicos, tecnológicos e políticos. Estudar lugares “errados”, no entanto, nos permite aprender muito sobre o lugar e sua importância persistente na “economia do conhecimento” de hoje (Takhteyev, 2012).
Entrevistando nas favelas. Foto por Jefferson Louis.
A ausência do Estado nas favelas brasileiras permite o surgimento de grupos armados que usam a violência para controlar o tráfico de drogas, forçar contratos e manter o poder. Eles mantêm sua própria ordem; fazem cumprir suas próprias leis. Os traficantes são respeitados pelos moradores porque criam um ambiente no qual segmentos críticos da população local se sentem relativamente seguros, apesar dos altos níveis de violência ao seu redor (Nemer & Reed, 2013).
As favelas mais famosas do Brasil estão na cidade do Rio de Janeiro, como a Rocinha e a Cidade de Deus. Para provar que a cidade podia ser um local pacífico para a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, a polícia expulsou traficantes do Rio, e muitos que escaparam da polícia tentaram se esconder em favelas de cidades próximas, como Vitória. A presença de traficantes em Gurigica transformou a favela em uma zona de guerra. Claramente, realizar etnografia nessas áreas é desafiador e arriscado. Ao longo do meu trabalho de campo em Gurigica, São Benedito, Itararé e Bairro da Penha, me vi no meio de três tiroteios entre facções rivais. Essas condições são outra razão pela qual as favelas são consideradas o lugar “errado” para se fazer pesquisa. Porém, a boa vontade e ajuda dos líderes comunitários, donos de lan houses e agentes de inclusão, todos locais, me permitiram aprender o que fazer e a ganhar confiança. Como a maioria dos moradores de favelas depende de Centros de Tecnologia Comunitária (CTCs), como lan houses e telecentros, para usar computadores e a internet, interagi com a maioria dos meus informantes nesses lugares.
Criança jogando em uma das lan houses. Foto por Thais Gobbo.
As favelas, como assentamentos “informais” e quase-legais, não estão completamente integradas às redes de infraestrutura, como sistemas de água e energia. O próprio ato de obter energia confiável pode ser um desafio diário e os computadores são especialmente suscetíveis a danos causados por conta da eletricidade irregular. Os moradores usam serviços públicos por meio de ligações ilegais e improvisadas, chamadas de “gatos”. As lan houses, que estão integradas a uma infraestrutura legalizada, têm que lidar com vizinhos que desviam suas redes e interrompem o fornecimento de energia, com interrupções que afetam sua capacidade de oferecer um serviço contínuo a seus clientes.
Um ninho de cabos Ethernet. Foto por Brenda Shade.
Assim como a eletricidade, a conectividade com a internet também ganha um caráter improvisado na favela — também precisa ser adquirida e mantida de forma confiável diante da contínua negligência institucional. Rafael, usuário de telecentros, me disse:
Eles [provedores de internet] dizem que não vão melhorar suas infraestruturas de internet porque não há clientes suficientes para eles no morro, mas não é verdade… se você olhar para todos os postes de luz, você vê toneladas de cabos azuis indo para todas as direções e todas as casas… precisamos de mais, e internet melhor.
Fernando, dono de uma lan house, explica:
Não posso ficar aqui esperando… O Governo não está interessado em nós, então é melhor eu fazer alguma coisa [internet]. As pessoas aqui não têm tempo para aprender sobre tecnologia e internet, e como é isso que eu faço, resolvi procurar artigos no Google e no YouTube que pudessem me ensinar como fazer isso [trazer internet para a comunidade dele]. Esta é, realmente, outra fonte de renda para mim, mas também sinto que estou fazendo algo de bom para minha comunidade.
A estratégia de Fernando foi assinar uma conexão de internet mais rápida pela casa do tio, que ficava na divisa da favela com um bairro mais rico. Jairo usou 15 roteadores Linksys e 500 metros de cabos Ethernet para conectar sua lan house e a comunidade vizinha.
Dono de lan house trazendo internet ao lugar esquecido. Foto por Leandro Recoba.
As lan houses, em sua centralização da disponibilidade tecnológica, tornaram-se uma fonte de ajuda e conhecimento tecnológico para os moradores da favela. O acesso com custo cada vez mais facilitado à tecnologia levou a um número crescente de usuários de primeira viagem na favela. As lan houses fornecem uma base a partir da qual os moradores podem adquirir o conhecimento e ajudar a manter suas compras, conforme descrito por Alex, outro dono de lan house:
…hoje em dia todo mundo pode comprar um computador, principalmente porque pode comprar parcelado e pagar em 48 meses. O problema é que eles não sabem como usá-lo direito… As pessoas vinham e me perguntavam se eu podia consertar os seus computadores já que eu mantenho o computador na minha lan house. Vi isso como uma oportunidade de ampliar meu negócio…agora recebo computadores com milhares de vírus, placas queimadas…e se não fosse por mim eles não conseguiriam consertar seus computadores já que eu cobro um preço justo e geralmente reciclo as placas.
Os próprios operadores de lan houses reúnem esse conhecimento tecnológico por meio de uma combinação de interação prática com vídeos e artigos online, em vez de qualquer certificação ou treinamento formalizado. Seu conhecimento em como usar, assim como o conserto de computadores ou o fornecimento de energia, é combinado e remendado entre si — assim como fazem os moradores com as lan houses e telecentros.
Almoxarifado do telecentro. As fontes de alimentação eram vitais para manter computadores funcionando. Foto por David Nemer.
Um exemplo mundano, mas esclarecedor, é o teclado QWERTY, que frustrou alguns moradores, como Maria, quando tentou descobrir como usá-lo:
Estou tentando aprender a usar essa coisa [computador], mas não faz sentido, perco muito tempo para escrever [digitar] alguma coisa porque não consigo encontrar as letras certas [teclas]. Atrapalha o aprendizado dessa coisa [computador]. Me sinto com raiva e desmotivada, mas tudo bem, porque quando encontro a maldita letra [tecla] eu não a aperto, eu soco!
Os próprios teclados refletiam a dureza do ambiente e seu uso pesado: teclas desbotadas e ilegíveis não são incomuns. Os computadores da lan house não eram locais de acesso sem problemas. Eles estavam tão desgastados e remendados quanto os sistemas maiores de infraestrutura da favela: e também tinham que ser enfrentados diariamente.
Um teclado desgastado de um telecentro. Foto por Jefferson Louis.
Por que pensar em teclados desgastados e sistemas improvisados de roteadores ao tentar reimaginar o que a infraestrutura, como conceito, pode fazer por nós? É porque, acredito, pensar nessas condições de ruptura e falha cotidiana nos permite visualizar a infraestrutura como um processo, e não como uma entidade estabilizadora e constante. A infraestrutura é e está remendada, precisa de um grande esforço, e está cheia de lacunas, buracos e costuras criados material e socialmente.
Essa ideia de uma infraestrutura bagunçada e instável exige a continuidade de pequenos atos diários que mantêm o sistema funcional. O ambiente da favela não deve ser visto como uma exceção à cidade do futuro: à medida que os centros urbanos estão crescendo e se tornando ainda mais centrais para nossa economia atual, precisam das pessoas que normalmente residem em favelas para construir e manter essas cidades. Portanto, é muito mais provável que a maioria da população mundial, nos próximos anos, viva nas condições que a favela incorpora: quase-legal, densamente povoada, beirando as áreas legalmente reconhecidas e servidas.
Parquinho infantil. Foto por Jefferson Louis.
A favela é o nosso futuro mundano, e o futuro é uma coisa confusa que precisa ser costurada cuidadosamente para se manter útil. As tarefas destacadas aqui — a luta constante contra “gatos”, a reconfiguração de conexões de internet lentas e quase inutilizáveis — todas essas tarefas são pequenas e parciais, se comparadas à grandeza dos anos de negligência institucionalizada que definem a favela. Mas talvez esses trabalhos de ajuste criativo (gambiarra) sejam a maneira mais eficaz de viverem com a infraestrutura que possuem. Creio que ninguém diria que os maiores problemas da favela podem ser magicamente resolvidos por alguns desses “reparadores criativos”, por mais temíveis que sejam suas habilidades de gambiarra. Mas a vida cotidiana fica muito mais suportável com a presença deles, como dizem os próprios moradores.
Se quisermos repensar a infraestrutura, devemos pensar em como ela se encaixa de maneira desconfortável e incerta no ritmo da vida das pessoas. Devemos considerar o trabalho que é necessário para adequá-lo e reconhecer sua natureza precária e aleatória, e suas correções. É apenas olhando para essas lacunas — esses pontos de ruptura, essas costuras — que podemos começar a ver a infraestrutura não como algo imposto ou negado às pessoas, mas como algo que deve ser vivido e tratado, em toda sua dimensão de realidade confusa e incerta.
Apropriação de tecnologias digitais. Foto por David Nemer.
Apesar dos desafios enfrentados por quem mora na favela, elas podem servir como bons exemplos de ecologias sociotécnicas para as cidades do amanhã. À medida que a indústria está se tornando cada vez mais interessada no desenvolvimento de cidades inteligentes para melhorar o desempenho e o bem-estar por meio da tecnologia, olhar para as favelas nos daria uma melhor compreensão de como construir cidades mais inteligentes. Cidades mais inteligentes, baseadas nas favelas, seriam lugares onde as pessoas caminhariam mais e dirigiriam menos, os vizinhos trabalhariam juntos e transformariam as relações em relacionamentos, e a vontade e os objetivos da comunidade seriam prioridades no planejamento urbano. Portanto, há uma oportunidade para os designers obterem insights dessas práticas sociais e desenvolverem tecnologias para promovê-las. A indústria também pode aprender e desenvolver organizações mais inteligentes prestando atenção às práticas improvisadas nas favelas, sua auto-organização por meio de ações participativas e evitando abordagens de cima para baixo. Em vez de olhar para as favelas como uma praga do presente, devemos abordá-las como ecologias sociotécnicas únicas e importantes que podem nos ensinar a construir um futuro melhor.
Notas
Este post é baseado no artigo “Living in the Broken City: Favelas, Infrastructural Inequity and the Materiality of the Digital” de Chirumamilla, P., & Nemer, D. (2014). As fotos foram tiradas principalmente por fotógrafos locais para o livro “Favela Digital: O outro lado da tecnologia” http://faveladigital.com, e possuem autorização de uso.
1. As LAN houses são estabelecimentos privados onde, como em um cybercafé, as pessoas podem pagar para usar um computador com rede local (LAN) e acesso à internet. As LAN houses juntamente com outros estabelecimentos de acesso à tecnologia, como telecentros e bibliotecas, são considerados centros comunitários de tecnologia (CTCs) (Nemer & Reed, 2013).
Referências
Chirumamilla, P., & Nemer, D. (2014) Living in the Broken City: Favelas, Infrastructural Inequity and the Materiality of the Digital. Annual Meeting of the Society for the Social Studies of Science, August, Buenos Aires.
Nemer, D. (2013). Favela Digital — The other side of technology. Vitoria, Brazil: Editora GSA. Takhteyev, Y. (2012). Coding places: Software practice in a South American city. MIT Press.
Nemer, D., Reed, P. (2013). Can a Community Technology Center be For-Profit? A Case Study of LAN Houses in Brazil. In Proceedings of the CIRN 2013 Community Informatics Conference. Prato, Italy.
Escrito por David Nemer
Doutorando na School of Informatics and Computing da Indiana University. Mestre em Ciência da Computação pela Saarland University, Alemanha; Bacharel em Ciência da Computação pela FAESA, Brasil; e Bacharel em Administração de Negócios pela UFES, Brasil. Seus interesses de pesquisa e ensino abrangem a interseção do desenvolvimento internacional, novas mídias, informática comunitária, TIC para o Desenvolvimento (ICT4D), estudos de ciência e tecnologia (STS), STS pós-coloniais e interação humano-computador (IHC). Metodologicamente, David utiliza métodos qualitativos extraídos da etnografia crítica em contextos online e offline e da análise quantitativa e qualitativa do conteúdo da web. Autor do livro Tecnologia do Oprimido: desigualdade e o mundano digital nas favelas do Brasil.
Tradução de Caio Albuquerque
Voluntário no EPIC Brasil, que gentilmente doou seu tempo e tornou possível a publicação deste artigo.
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