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O problema da guerra da Ucrânia já não é a possibilidade de escalada, mas a escalada em curso. Na semana passada foi discutida a utilização de misseis de longo alcance, o que implica o uso dos dados de satélite da Otan para fixar os alvos a atingir em solo russo. Diz Putin: se essa decisão for tomada, ela significará a participação direta dos países da Otan na guerra da Ucrânia(…)Isso mudaria a própria natureza do conflito”. O lado ocidental insiste em desvalorizar as palavras do presidente russo. Eu recomendaria maior prudência.
A agressão russa deve ser veementemente condenada. Sim, é preciso combater a invasão e defender a independência da Ucrânia. Há, no entanto, alguns mitos ocidentais que todos ganharíamos em pôr de parte na compreensão desta guerra. O primeiro é o da fraqueza da Rússia sob a liderança de Putin. Não é verdade. O descalabro russo aconteceu na década de noventa, a seguir ao colapso soviético. Esse foram os anos de decadência e de sofrimento. A seguir, já com Putin como presidente, veio a recuperação econômica e social. Não é um ponto de vista, é um fato. Emmanuel Todd sublinha bem este ponto recorrendo às chamadas “estatísticas morais” como elemento de prova: de 2000 a 2017 a taxa de mortos por alcoolismo (por cem mil habitantes) baixou de 25, 6 para 8,4; a taxa de suicídio foi de 39, 1 para 13, 8; a taxa de homicídio de 28, 2 para 6, 2. Mais ainda: a taxa de mortalidade infantil, importante indicador de saúde publica, caiu de 19 em 2000, para 3, 8 em 2022 – abaixo da taxa dos Estados Unidos que era de 5,4 por cento nesse ano. Estes dados são suficientes para demostrar quão absurda e perigosa é a ideia de uma Rússia débil, esgotada e ultrapassada.
O segundo mito deriva do primeiro – a fraqueza econômica da Rússia não resistiria às sanções econômicas do Ocidente, em particular com a exclusão dos bancos russos do sistema Swift de transferências internacionais. Seria questão de meses até o país estar de joelhos, implorando a paz. Não foi assim. A economia russa surpreendeu tanto como a resistência militar ucraniana. A Rússia não é uma autocracia esclerosada com uma economia rígida e estagnada, incapaz de se adaptar a novos desafios. Não, não é. A Rússia é um adversário que deve ser levado a sério.
Finalmente, o terceiro mito consiste na ideia infantil de confundir a comunidade internacional com o Ocidente. Não, não é a mesma coisa. Todos vimos com agrado a condenação quase unânime da invasão russa na primeira Assembleia Geral da Nações Unidas a seguir ao início da guerra. Todavia, passado o primeiro choque, é muito difícil afirmar que todo o mundo partilha a indignação ocidental. Pelo contrário, um pouco por todo o lado vemos aflorar posições de apoio discreto à Rússia. Se tomarmos como medida os países que aplicam de fato as sanções econômicas teremos a verdadeira dimensão da realidade política mundial. A obediência do mundo aos ditames e aos interesses ocidentais já não é o que era. Muitos acadêmicos consideram a crise ucraniana de 2014 como o momento em que o mundo deixou de ter uma ordem mundial unipolar. Acho que têm razão. Levar a União Europeia e a Otan até à fronteira russa foi, e ainda é, um exercício de arrogância. Assim nasceu um outro polo – o da aliança Rússia- China. É nesse mundo bipolar que agora vivemos.
Olho para uma entrevista de Anne Applebam e vejo naquelas palavras toda a arrogância ocidental tão própria destes tempos: “os russos não se sentem limitados pela moral”. Como poderiam, aliás? Não são como nós, não pensam como nós, não sentem como nós – não passam de um povo amoral liderado por um monstro. Pronto. Que mais é necessário compreender nesta guerra? Eles são os maus, nós os bons. Foi a este ponto de indigência intelectual na análise geopolítica que o Ocidente chegou. Há exatamente vinte anos a mesma Anne Applebam, num célebre artigo intitulado “irrefutável”, explicava aos pobres de espírito que “é difícil imaginar como alguém pode duvidar que o Iraque possui armas de destruição maciça.”
É exatamente este espírito de cruzada maniqueísta que deve ser evitado. Todas as guerras são travadas com incerteza – como também Putin aprendeu da forma mais dura. Todavia, neste momento o ponto mais importante que importa sublinhar é que este é um conflito em que um dos contendores tem armas nucleares. Assim sendo, todos os esforços devem ser feitos para que continuem sem ser usadas. Esta guerra é assunto sério.
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