Irregularidades e Pressão como Base da Denúncia

Irregularidades e Pressão como Base da Denúncia

Por Carlos Arouck

A delação premiada de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, foi homologada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), em setembro de 2023 e tornou-se um dos principais alicerces da denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o ex-presidente e 33 aliados. No entanto, as circunstâncias sob as quais esse acordo foi firmado levantam sérias dúvidas sobre sua validade jurídica. Elementos como prisão prolongada, ameaças explícitas e a participação ativa do próprio Moraes no processo sugerem que a colaboração pode ter sido obtida sob coação, comprometendo sua legalidade e, consequentemente, a credibilidade da acusação.

O uso da delação como instrumento central de investigação contra Bolsonaro, somado a essas irregularidades, levanta questionamentos sobre a imparcialidade do STF e a lisura do processo judicial.

A Lei 12.850/13, que regula a colaboração premiada no Brasil, estabelece que qualquer delação deve ser voluntária, sem qualquer tipo de coerção. No caso de Mauro Cid, esse princípio fundamental foi violado de maneira evidente. Em maio de 2023, Cid foi preso na Operação Venire e permaneceu sob custódia por quatro meses antes de assinar o acordo de delação. A prisão preventiva, que deveria ser uma medida excepcional, foi utilizada como ferramenta de pressão, uma vez que não havia um risco concreto de fuga ou obstrução da justiça.

Além disso, durante sua detenção, Cid foi proibido de manter contato com sua esposa, uma tática que advogados como Alberto Zacharias Toron classificaram como “isolamento psicológico forçado”. Esse tipo de medida, que deveria ser justificada de maneira excepcional, acabou servindo como uma forma indireta de coação para que o delator aceitasse os termos do acordo.

Outro fator crucial que coloca a voluntariedade da delação sob suspeita é a pressão explícita exercida pelo Ministro durante o processo. Em uma audiência no STF, realizada em março de 2024, o relator declarou que a delação era a “última chance” de Cid “dizer a verdade”, alertando que, caso contrário, ele enfrentaria prisão prolongada e que sua família poderia sofrer consequências.

Esse tipo de ameaça, quando vinda de um ministro do Supremo, cria um ambiente de pressão extrema, no qual o colaborador pode sentir-se forçado a fornecer informações que correspondam às expectativas da autoridade, e não necessariamente a realidade dos fatos. Além disso, áudios vazados do próprio Cid reforçaram essa percepção de coerção. Nesses áudios, o ex-ajudante de ordens afirmou que a Polícia Federal o pressionou a “falar o que queriam ouvir” e a confirmar uma “narrativa pronta”.

Embora tenha posteriormente alegado que suas palavras foram apenas um desabafo, a credibilidade de sua delação foi profundamente abalada, uma vez que esse tipo de declaração sugere que parte do depoimento pode ter sido fabricado sob orientação externa.

A atuação do Ministro nesse processo também ultrapassou os limites do papel tradicional de um juiz. De acordo com a Lei 12.850/13, o magistrado deve apenas homologar o acordo de colaboração, verificando sua legalidade formal, sem interferir no conteúdo do depoimento. No entanto, Moraes teve um papel ativo na condução da delação, chegando a cobrar detalhes específicos sobre fatos que ainda não haviam sido mencionados por Cid. Um dos exemplos mais emblemáticos foi a exigência de que o delator detalhasse um suposto plano de assassinato de autoridades, incluindo o próprio ministro, além do presidente Lula e do vice-presidente Geraldo Alckmin.

Esse plano só foi mencionado por Cid em novembro de 2024, meses após seu primeiro depoimento, o que levanta dúvidas sobre a espontaneidade dessas informações. Além disso, ao intervir diretamente na construção da narrativa do delator, Moraes criou um problema jurídico grave: o de um juiz que, além de supervisionar o processo, também direciona o conteúdo da acusação.

Esse comportamento entra em conflito direto com o princípio da imparcialidade judicial, previsto na Constituição, e reforça a percepção de que a delação foi moldada para atender a determinados interesses, e não para esclarecer os fatos de maneira objetiva.

Outro aspecto preocupante do processo da delação de Mauro Cid foi a inconsistência e a mudança de versões em seus depoimentos. Em diferentes momentos, ele alterou suas declarações sobre eventos centrais para a investigação. Um exemplo notável foi a reunião na casa do general Braga Netto. Inicialmente descrita por Cid como um encontro casual, ela passou a ser retratada como parte de uma conspiração golpista após novas pressões da Polícia Federal e do próprio STF.

Mudanças desse tipo sugerem que sua delação pode ter sido ajustada ao longo do tempo para se alinhar a uma tese previamente estabelecida pela acusação. Além disso, a Polícia Federal identificou omissões graves em sua delação inicial, como a ausência de informações sobre a minuta golpista. Essas omissões só foram corrigidas depois que Cid foi advertido de que poderia perder os benefícios do acordo. Esse comportamento reforça a tese de que a colaboração premiada não foi um ato espontâneo, mas sim uma estratégia de defesa moldada conforme a necessidade de atender às exigências da investigação.

Se a delação de Mauro Cid for considerada inválida por ter sido obtida sob coerção, os impactos serão significativos. O primeiro e mais imediato efeito será sobre o próprio delator. Caso o acordo seja anulado, Cid perderá todos os benefícios concedidos, incluindo a liberdade provisória, e poderá enfrentar penas mais severas pelos crimes que confessou.

Além disso, a denúncia da PGR contra Jair Bolsonaro e seus aliados perderia um de seus pilares centrais. A narrativa de tentativa de golpe de Estado se baseia fortemente no depoimento de Cid, e sua retirada do processo fragilizaria a acusação. No entanto, vale ressaltar que, mesmo que a delação seja anulada, provas questionáveis — como a minuta golpista e mensagens sem nexo causal de celular apreendidas — ainda poderiam ser utilizadas no caso, conforme entendimento do STF em decisões anteriores.

A aceitação de uma delação obtida sob pressão também cria um precedente jurídico perigoso. Se esse tipo de prática for validado pelo STF, abre-se espaço para que futuras delações sejam forçadas por meio de prisões prolongadas e ameaças veladas, transformando a colaboração premiada em um instrumento de coerção estatal, e não em um meio legítimo de investigação. Isso pode comprometer a credibilidade do próprio sistema judicial, dando margem para questionamentos sobre sua imparcialidade e independência.

Juristas como Ives Gandra Martins já alertaram para o risco de que o STF esteja atuando não como um tribunal de garantias, mas como um órgão político com interesses próprios.

Diante de todos esses elementos, a grande questão que permanece é se a delação de Mauro Cid revelou a verdade ou apenas fabricou uma versão conveniente para atender aos interesses da investigação.

O uso da prisão preventiva como instrumento de pressão, as ameaças explícitas feitas pelo ministro Alexandre de Moraes, as mudanças de versão do delator e a interferência direta do STF no processo apontam para um cenário em que a delação foi obtida sob forte influência externa. Se a defesa de Bolsonaro e seus aliados conseguir demonstrar que a colaboração foi resultado de coerção, há grandes chances de que a delação seja anulada, o que teria repercussões profundas tanto no andamento do caso quanto na credibilidade do sistema judicial brasileiro. O que está em jogo não é apenas o destino dos investigados, mas a integridade do próprio processo legal.

Por Ultima Hora em 20/02/2025
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