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Por Guilherme Amado, do Metrópoles - Yago Corrêa se lembra nitidamente do rosto dos policiais militares que o prenderam no último dia 6 na favela do Jacarezinho, uma das maiores da Zona Norte do Rio de Janeiro. As imagens daquela tarde voltam sempre que ele pensa em sair de casa de noite. Tem medo de “ser sumido”. O temor não é exclusivo de Yago na favela. Desde que agentes de segurança pública tomaram as ruas do Jacarezinho para instalar o Cidade Integrada, novo projeto de ocupação de favelas do governo do estado, moradores relatam um ambiente de medo que ofusca qualquer das várias promessas de benesses que vêm sendo feitas.
As lembranças mais antigas que a população tem do contato com a polícia também não ajudam. O histórico de violência policial no Jacarezinho vem de tempos, mas piorou muito em maio do ano passando, quando ocorreu a operação policial mais letal da história do estado do Rio, com 29 mortos. A pior de todas as diversas chacinas das últimas três décadas. O episódio foi uma das razões que fez a favela ser escolhida para receber o programa de ocupação do governo.
Também não ajudou a abordagem escolhida pelo governo para mais essa tentativa de restabelecer o controle territorial do Jacarezinho, dominada até mês passado pelo Comando Vermelho, a maior facção criminosa do estado e uma das maiores do país. O Jacarezinho teve uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), programa de ocupação criado em 2008 e extinto em 2018, que tentou, sem sucesso, estabelecer uma relação de diálogo com os moradores. Desta vez, no dia 19 de janeiro, sem qualquer conversa prévia com os moradores sobre o programa Cidade Integrada, policiais militares e civis entraram no Jacarezinho. O tom da relação com a comunidade foi dado pelo governador Cláudio Castro na entrevista em que lançou o Cidade Integrada, no dia 22 de janeiro: “Ocupação não se faz com diálogo”.
No primeiro dia, não houve confronto entre militares e criminosos do Comando Vermelho. O aparente sucesso da retomada de controle da região sem violência chegou a ser celebrado pelo governo estadual. Mas os episódios de confrontos, violência e arbítrio policial começaram a vir à tona já no quarto dia de ocupação, com o registro de tiroteios e a invasão de lares. No fim de semana seguinte, com dez dias de Cidade Integrada, um estudante negro saiu para comprar pão e foi preso injustamente como traficante. Era Yago, o rapaz que agora não sai de casa sozinho.
Era um domingo de clássico: Flamengo e Fluminense se enfrentavam naquela tarde pelo Campeonato Carioca. Flamenguista, Yago interrompeu o churrasco que fazia com os amigos para assistir ao jogo e foi à padaria comprar pão. Estava no meio do caminho quando ouviu o som dos disparos: tiroteio. Para se refugiar, Yago correu para dentro de uma farmácia. Fugiu das balas, mas a polícia foi atrás dele. Os agentes acusaram o jovem de ter corrido não para se abrigar, mas porque era “traficante”.
Yago foi levado para Benfica, o presídio “porta de entrada”, para onde os detentos vão antes de ser encaminhados às penitenciárias onde cumprirão pena ou a prisão preventiva. Ficou lá por três dias, de domingo (6/2) a quarta-feira (9/2). Lembra que, morador de favela e negro num país em que o racismo estrutural não é exatamente generoso com moradores de favela e negros, Yago sempre tivera medo de ser preso por um crime que não cometeu. O dia havia chegado. “Eu estava em desespero, muita gente vai presa e fica (lá) por muito tempo sem ter feito nada”, lembrou. E Yago estava longe de ser o único a ter esse medo no Jacarezinho.
O temor de ser levado preso injustamente por policiais também foi relatado por X, que, no dia 31 de janeiro, recebeu dois golpes de faca de um policial que, segundo ele, o acusou de pertencer ao tráfico de drogas. Era quase meia noite quando X chegou do trabalho e foi abordado por uma das tropas que fazia a ronda noturna. Os policiais o revistaram e disseram, segundo X, que ele “era envolvido (com o tráfico) porque trabalhador não circula tarde da noite nos becos”. X contou que, com medo de ser detido sem ter feito nada, gritou por ajuda de um morador e tentou “se livrar do enquadro”. Foi quando, de acordo com ele, recebeu dois golpes de faca de um policial. X denunciou o caso em suas redes sociais, mas não registrou um boletim de ocorrência e nem levou à Corregedoria instalada na favela. Disse ter medo de represálias.
Uma ação prometida e já entregue pelo governo foi a criação dessa Corregedoria da PM dentro do Jacarezinho. Contudo, nenhuma das vítimas ouvidas pela coluna teve coragem de abrir uma denúncia formal contra os policiais. “Eles arrombam nossas casas, como vamos reclamar formalmente deles?”, questionou Y, que teve sua casa invadida por agentes no primeiro final de semana do programa, o que já virou rotina no Jacarezinho.
Y estava no trabalho quando recebeu uma ligação de seu vizinho avisando que os policiais estavam dentro de sua casa. Sem poder deixar o comércio em que trabalha, Y pediu para que o vizinho entrasse na casa quando os agentes saíssem. Quase 20 minutos depois, segundo ela, recebeu um vídeo que mostrava sua casa toda revirada e a porta, quebrada. Quando chegou em casa e começou a arrumar “o estrago feito pelos policiais”, percebeu o sumiço de perfumes e dinheiro.
Das denúncias recebidas pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, a maior parte foi da invasão de lares, 7 de 8. Alguns defensores ouvidos pela coluna, contudo, chamam atenção para o baixo número de denúncias que chegaram ao órgão. Para eles, os moradores estão com medo de formalizar as queixas, uma vez que nas redes sociais o número de denúncias é grande. A família de Yago foi uma das poucas que tornaram o caso público.
A Secretaria de Polícia Militar não quis responder se tomará alguma medida para incentivar os moradores a denunciar agressões e arbitrariedades praticadas por policiais. Também não informou o número de denúncias recebidas no posto da Corregedoria no Jacarezinho. O núcleo do governo responsável pelo Cidade Integrada disse apenas que denúncias podem ser feitas, de forma anônima, na corregedoria ou na ouvidoria da PM, e também ignorou a pergunta sobre o medo da população de denunciar.
Mesmo sendo um dos principais programas do governo de Castro para o estado, a responsabilidade de apuração dos excessos cometidos está inteiramente com a Polícia Civil e com a Polícia Militar. O governo não tem um canal direto de diálogo que pode ser acessado por moradores.
Os moradores avaliam que não há vontade e empenho para ouvir os moradores sobre as reais necessidades da comunidade. Um caso que exemplifica, relatou Z, é a proibição da venda de botijões de gás pelo comércio local, que pesou no bolso: os moradores têm de pagar R$ 35 a mais por um botijão. Antes, segundo Z, era possível obter um botijão por R$ 85. Agora, sai por R$ 120. O governo do Rio informou à coluna que não tem “fornecedores autorizados” e nem está taxando os botijões, apenas proibiu a venda no comércio local para impedir a imposição do tráfico sobre os moradores. A tática é defendida pela Polícia Civil, que considera importante “sufocar” as fontes financeiras do crime.
“O que o governo do estado fez foi permitir o livre comércio para venda de gás por empresas distribuidoras para que pudessem entrar para vender. Sendo assim, os moradores passaram a ter o direito de comprar onde e de quem quiserem”, disse o núcleo responsável pelo Cidade Integrada, que ainda estuda como será a execução do prometido “voucher gás”, que funcionaria como uma forma de auxílio aos moradores.
Contudo, Z, que necessita de gás para seu trabalho, tentou entrar no Jacarezinho com um botijão comprado fora da comunidade e teve, segundo ela, o material apreendido por policiais. Outros moradores também se queixaram de não poder comprar gás fora das distribuidoras “permitidas” pelo estado. O governo afirma que não há proibição e informou que a Corregedoria da PM não recebeu nenhuma denúncia sobre o assunto. Se ninguém denunciou, na lógica torta do governo, é porque não existiu.
A irmã de Yago, Érica Corrêa, comerciante, que atuou, no primeiro momento, na defesa do irmão e fez uma mobilização dentro do Jacarezinho pedindo a liberdade do jovem, confirmou a percepção dos demais entrevistados: as denúncias de violação de direitos constitucionais são frequentes dentro da comunidade, mas não viram queixas formais por medo.
Para Silvia Ramos, cientista social e coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania e que acompanhou a ocupação da PM pelas UPPs, a desconfiança que Érica citou na entrevista em vídeo é resultado de um programa que começou, segundo ela, com uma sucessão de erros já cometidos anteriormente.
“Ajustes que deveriam ser feitos para evitar a escalada das tensões entre os policiais e moradores e para criar canais permanentes de diálogo entre o governo e comunidade não estão sendo feitos. Os ânimos estão esquentando e a atual estrutura do programa é uma receita para tragédias”, disse a cientista política.
O Cidade Integrada é uma promessa do governo do estado desde 2021, mas só começou a ser executado em 2022, ano eleitoral. Candidato de Jair Bolsonaro ao governo do Rio de Janeiro, Castro está alinhado com os ideais de uma política de segurança pública dura, como defende o presidente e sua base.
O governador, que assumiu o Palácio Guanabara após o impeachment de Wilson Witzel, que também foi candidato de Bolsonaro, em 2018, com a promessa do “tiro na cabecinha” de criminosos, defende veementemente que o Cidade Integrada não é um programa de segurança pública, mas social. Inicialmente, duas comunidades foram ocupadas, uma controlada pelo Comando Vermelho, o Jacarezinho, e uma dominada pela milícia, a Muzema, em Jacarepaguá, na Zona Oeste da cidade. Um mês após a ocupação, nenhum confronto foi registrado nesta última.
Até o momento, além da presença das forças de segurança do estado no Jacarezinho, o governo já levou para a favela alguns benefícios: um programa de emissão de documentos, ações de capacitação profissional, aulas de dança, orientação para a regularização fundiária e a oferta de créditos financeiros. Além disso, as ações de retirada de barricadas, a colocação de asfalto em algumas ruas e a livre circulação de veículos dentro da favela foram elogiadas por alguns moradores. Há quem agradeça também pelo fim dos bailes funk, geralmente criticados em favelas por moradores evangélicos e incomodados com o som alto até tarde perto de casa. Os saudosos das festas afirmam que eram “momentos de diversão da favela” e que estimulavam o comércio local. Mas enxergar o Cidade Integrada como um programa social, como defende o governo, ainda não algo alcançável aos moradores.
Érica, a irmã de Yago, está pessimista. Disse considerar que o programa não mudará nada e que daqui há dez anos tudo estará igual. Yago está um pouco mais otimista. Disse saber que vai viver a vida toda com a lembrança ruim da prisão, mas espera que, em uns dez anos, possa andar tranquilamente na favela onde nasceu.
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