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Alguns assuntos são tão necessários que todas as formas de torná-los acessíveis ao público é vital. Entre eles a ditadura as mazelas sociais. Em um país de memória restrita e forçosamente apagada esses espetáculos trazem à cena argumentos que podem de algum jeito contribuir para um repensar e suscitar reflexões imprescindíveis.
Apesar de estilos muito diferentes, os espetáculos têm a força cênica de suas protagonistas Andrea Beltrão, Kelsy Ecard e Analu Prestes.
Lady Tempestade com Andrea Beltrão tem como ponto de partida o diário da advogada Mércia Albuquerque, escrito nos anos 1973 e 1974. A advogada presenciou covardias contra pessoas que lutavam ou apenas se posicionavam contra a ditadura militar nos anos de chumbo. Mércia fez diversas anotações usando um diário que se tornou livro e inspirou espetáculo.
Nesses anos truculentos, um dos episódios que a marcou profundamente foi ter visto Gregório Bezerra, deputado constituinte, dirigente do PCB, opositor da ditadura militar, amarrado à traseira de um jipe arrastado seminu pelas ruas do Recife, que teve ainda, seus pés banhados em soda caustica, sangrando durante o trajeto. Esse dia era 02 de abril de 1964, dois dias após o golpe. Nesse mesmo dia Mércia decide abandonar o trabalho para defender presos políticos. Virou referência. Lutou e sofreu. Não desistiu. Tornou-se questão de vida e poderia ter lhe causado a própria vida. Mesmo com todo sofrimento e inúmeros sobressaltos não perdeu de vista seu objetivo e sua tenacidade. Mentir para mãe, eu não faço, diz Mércia emergida em seus conflitos e dores. Obstinada, peregrinou por cadeias, onde celas eram infectadas por insetos, restos de fezes, vômitos e tudo de mais horrendo, hospitais, necrotérios, lugares que chegou a comparar com campos de concentração. Homens e mulheres, muitos jovens, presos e torturados como na era medieval. Mércia também foi presa várias vezes. Não parou, não se calou, não se dobrou. Acolheu mães em estado de desespero. Atitude mais nobre não há.
Em cena Andrea Beltrão em estado pleno. O texto muito bem escrito por Silvia Gomez nos absorve do início ao fim, e esse é obviamente o grande mérito da peça aliado ao imenso talento e competência cênica de Andrea, visto se tratar de um tema tão difícil.
A direção de Yara de Novaes é excepcional e dá as mãos a todos os demais criativos resultando em uma peça potente, que dá nó na garganta, lágrimas muitas vezes, mas nos faz repensar. Um estado de alerta necessário.
Uma ode aos que lutaram a seu jeito e modo enfrentando a desumanidade que foram os anos de chumbo no Brasil, cuja história só vale ser lembrada para não ser repetida.
Andrea tentou resistir ao texto, pois vinha de outro espetáculo pesado, por assim dizer, Antígona, mas como ela diz: ’ talvez nesse momento tudo que eu quisesse fosse um maiô com paetês, um teatro de revista. Mas depois que li, como dizer não pra isso?’. Ao lado do filho Chico B, que faz intervenções sonoras e algumas participações que dão um toque ainda mais especial a peça, já que relembra o quanto Mércia se devotou e se empenhou tão intensamente às mães que sofriam em busca de seus filhos. Um encontro que faz todo sentido. A dramaturgia nos permite um mergulho profundo no céu escuro do Brasil e nos desperta o fôlego para seguir atento. E ainda, a cereja do bolo, a força cênica de uma atuação impecável de Andrea Beltrão. Não há como deixar passar um espetáculo dessa grandeza.
Na outra ponta uma história que perpassa pelos anos de chumbo, mas com base na trilha sonora de Chico Buarque. Outro mote, mas dialogam.
O musical Meu Caro Amigo, encerra temporada na próxima semana, vindo de temporadas virtuosas, já assistidas por mais de 20 mil espectadores em que a atriz Kelsy Ecard nos traz um espetáculo sensível, lúdico e cheio de referencias. Interpretando uma professora de história, Norma Aparecida, apaixonada por Chico Buarque, decide fazer um show para declarar todo seu amor ao ídolo. Na peça Kelsy além de brindar público com uma performance acertadíssima, canta algumas músicas, entremeadas com versões originais, ou seja, Chico e Kelsy resultam em uma parceria perfeita.
A trama se passa na vida de Norma desde sua infância, vivida na época da ditadura militar e da redemocratização do país, por seus desejos, acertos, desacertos e o grande sonho de assistir ao show de Chico Buarque por quem ela tem enorme paixão e é parte intrínseca da trilha sonora de sua vida. A personagem faz de Chico um parceiro de sua jornada e em cena kelsy esbanja seu talento nos apresentando um espetáculo primoroso, delicioso, acompanhada pelo excelente pianista João Bittencourt.
A narrativa se passa de 1966 a 2016, permitindo uma reflexão dos dias atuais. O texto é de Felipe Barenco, direção de Joana Lebreiro, idealização de Kelsy, direção musical de Marcelo Alonso Neves, que acerta em cheio nas escolhas e a luz singular de Paulo Cesar Medeiros. Assistir Kelsy é sempre um alento e a afirmação do teatro de qualidade. Um musical que nos pega no afeto, diverte e emociona.
Senhor Diretor, estreou no final do ano passado com atuação destacada de Analu Prestes, sobre o conto homônimo de Lygia Fagundes Telles, primeira mulher brasileira indicada ao prêmio Nobel de Literatura. Por conta do sucesso reestréia no próximo dia 11 de março.
Analu experimentada nos tablados, atriz de primeira linha, apresenta a história de uma mulher de 62 anos que se descobre distante de si mesma e dos seus desejos. Temas relevantes como solidão, sexualidade, envelhecimento e morte estão bem latentes na vida de Maria Emilia, professora paulistana que viveu seu tempo áureo no século passado. Solitária a professora ao passear pelas ruas da cidade, no dia de seu aniversário se depara com manchetes de jornais e revistas, que a seu modo de ver, são absurdas deixando-a escandalizada. Resolve então, escrever uma carta ao diretor do Jornal da Tarde relatando sua preocupação com o caos social. O que a professora não sabe é que tais linhas lhe trazem a tona sentimentos inesperados, lembranças indesejadas, fantasias e julgamentos. Sem dar conta desses sentimentos decide entrar em um cinema da cidade onde revelações acontecem.
Um espetáculo simples que diz ao que veio, além de ratificar a valiosa união do teatro e literatura. A direção é de Silva Monte que também colabora na trilha sonora com Yahn Wagner e inclui clássicos como Um Tango em Paris, entre outros que caem muito bem à dramaturgia. Figurino e cenário são de Analu que dão um toque especial à construção da personagem e da narrativa proposta. Senhor Diretor conspira entre aqueles espetáculos que nos arrebatam do início ao fim.
Teatro Poeira: Quinta a Sábado, 20h / Domingo, 19h
Rua São João Batista 104 – Botafogo
Teatro Sesi Firjan – Centro
Segunda e Terça, 19h
Av. Graça Aranha, 01 / Centro
Teatro Poeira: Terças e Quartas, 19h
Rua São João Batista 104 – Botafogo
Por Rogéria Gomes
teatroemcenanoradio@gmail.com
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