O Ativismo Ateísta diante do Espelho

Por Ricardo Oliveira da Silva - Doutor em Hist

O Ativismo Ateísta diante do Espelho

A palavra “ativismo” faz parte do vocabulário cotidiano em nosso país. É comum se falar, por exemplo, em ativismo político ou judicial para se referir as atitudes de pessoas e grupos. Alguém que consultar o dicionário vai encontrar o termo ativismo com o significado de “transformação da realidade por meio da ação prática” ou, em um sentido mais preciso, como “doutrina que prioriza a prática efetiva de transformação da realidade”.

Alguns anos atrás o Brasil viu um ativismo até então inexistente em sua história: o ativismo ateísta. O fenômeno surgiu a partir de pessoas e grupos que, após contatos, interações e militância nos espaços digitais, criaram associações (vide ATEA: Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos), promoveram encontros, palestras e ações judiciais. O que havia em comum em relação as pessoas que faziam parte desse ativismo? Elas se definiam como ateias.

A identificação desse grupo como ateísta em um país cuja sociedade possui entre seus traços peculiares uma ampla e forte religiosidade mobilizou o senso de urgência em atuar no espaço público a partir de algumas pautas, entre as quais: combater o preconceito social ao ateísmo, a influência política de grupos religiosos e a defesa da laicidade do Estado.

Ainda que ateus e ateias sejam um grupo minoritário no país, durante alguns anos eles se mobilizaram no espaço público. Isso ocorreu principalmente durante a primeira metade da década de 2010. A difusão da internet tinha favorecido que essas pessoas, espalhadas em um país de dimensões continentais, pudesse se conhecer e trocar relatos sobre experiências de preconceito e discriminação, algo importante para criar um senso de identidade e da necessidade de uma ação conjunta. Isso foi a semente da militância ateísta.

O ativismo no sentido de buscar uma mudança da realidade, ainda que de aspectos específicos dela, marcou a atuação de ateus e ateia naqueles anos: luta para não serem discriminados por causa do ateísmo e pelo fortalecimento do Estado laico como uma garantia institucional para não acabarem legalmente considerados cidadãos e cidadãs de segunda classe.

Mas o ativismo no sentido de uma doutrina que orienta a práxis social também marcou a atuação pública dos ateus e ateias no passado recente do país? Uma resposta para essa pergunta precisaria do amparo da resposta de outra pergunta: o que é o ateísmo? Ou, o que era o ateísmo para as pessoas que se engajaram na militância em associações e ações judiciais?

Em termos conceituais ateísmo geralmente é definido como “não acreditar na existência de Deus”. Trata-se de um sentido bem usual, porém, de história recente se for considerado as origens da palavra na Grécia Antiga. Daquela época, até fins da Idade Moderna, ateísmo se referia muito mais a impiedade, desrespeito em relação aos cultos divinos ou negação da validade de algum dogma da fé, como a existência da alma, por exemplo, do que não acreditar que Deus existia, um significado pouco referenciado pelas pessoas.

Foi na Europa do século XVII para o XVIII que a palavra ateísmo adquiriu o sentido que soa mais familiar aos ouvidos de hoje: “não acreditar na existência de Deus”. Naquele momento, o desenvolvimento do conhecimento científico e filosófico forneceu as bases para se fundamentar de modo mais consistente uma compreensão de mundo sem viés religioso. Essa pode ser uma forma de interpretar a famosa frase de Nietzsche: “Deus está morto”.

Mas qual o impacto para o ativismo ateísta se pensar o ateísmo com um viés de negação (“não creio que Deus existe”)? Sob esse prisma o ateísmo nem mesmo seria uma doutrina. Seria apenas uma postura de recusa de crenças religiosas. Isso fez e faz com que muitas pessoas vejam o fato de serem ateias apenas como uma posição individual (“eu não acredito em Deus”) que não se conecta diretamente com outras demandas da realidade social ou que se restringe a bandeiras individuais: “não quero ser discriminado por ser ateu”!

Entre os ateus e ateias brasileiros a força do entendimento do ateísmo como negação de crenças religiosas contribuiu para que o ativismo fosse de curta duração. Os grupos ateístas se fragmentaram sem estabelecerem pautas e formas de organização mais sólidas, com muitos obcecados em apenas dizer que a religião é algo errado. Em anos mais recentes apareceu até mesmo o curioso caso dos “ateus bolsonaristas”, os quais justificam suas posições políticas afirmando que ateísmo é apenas “não acreditar em Deus”.

Contudo, assim como a religião não se restringe a proposição “acreditar em Deus”, mas envolve uma visão de mundo com implicações sociais e políticas, o ateísmo também é mais do que “não acreditar na existência em Deus”, mas implica uma visão de mundo que impacta a forma de se entender diferentes aspectos da sociedade. O Iluminismo do século XVIII foi uma referência matriz para se entender o ateísmo como uma cosmovisão alternativa àquelas fornecidas pelas crenças religiosas, via bases racionais, seculares, científicas e filosóficas que se tornaram um poderoso fermento para contestação da ordem vigente.

No final da década de 1990, ou seja, anos antes do florescimento do ativismo ateísta brasileiro, o escritor Eduardo Banks, no livro Tratado sobre as coisas sagradas, já alertava que o ateísmo trazia entre suas consequências uma moral pautada na bondade e na caridade, em face do entendimento da experiência única da vida humana na Terra, consciência para a necessidade da construção de um senso de dever pelo bem-estar coletivo.

Contudo, essa não foi a tônica do ativismo de muitos ateus e ateias no Brasil, presos em um referencial de apenas negar algo (religião). Se esse grupo um dia pretender revigorar essa militância, vai precisar, preliminarmente, colocar a história do ativismo ateísta diante do espelho e entender os motivos do seu fracasso. Caso contrário, esse ativismo permanecerá morto.

Por em 22/12/2021

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