O estado sitiado: como facções e milícias transformaram o Rio em um campo de batalha urbano

Além do cartão-postal: a batalha sangrenta pelo controle territorial no Rio de Janeiro

O estado sitiado: como facções e milícias transformaram o Rio em um campo de batalha urbano

Violência no Rio supera conflitos internacionais enquanto facções, milícias e Estado disputam território em batalha que faz reféns milhões de cidadãos

O Rio de Janeiro vive uma realidade que, embora normalizada no noticiário cotidiano, supera em brutalidade e número de mortos muitos conflitos armados internacionais. A cidade maravilhosa, cartão-postal do Brasil para o mundo, tornou-se palco de uma guerra não declarada onde facções criminosas, milícias e forças de segurança travam batalhas diárias pelo controle territorial, enquanto a população civil permanece refém desta disputa sangrenta.

A história desta guerra urbana tem raízes profundas. Desde a fundação da cidade, o Rio enfrentou disputas territoriais, começando com a batalha pela Baía de Guanabara entre portugueses e franceses no século XVI. Séculos depois, durante o período das reformas urbanas de Pereira Passos, o famoso "Bota-abaixo" deslocou populações inteiras para os morros, criando as primeiras favelas. A perda do status de capital federal em 1960 e a posterior fusão forçada dos estados da Guanabara e Rio de Janeiro em 1975 agravaram a crise de identidade e o esvaziamento econômico da região.

Porém, foi no Instituto Penal Cândido Mendes, na Ilha Grande, durante a ditadura militar, que nasceu o embrião do que se tornaria o maior problema de segurança pública do estado. A convivência entre presos políticos e criminosos comuns, amparada pelo Artigo 27 da Lei de Segurança Nacional, criou o ambiente perfeito para o surgimento do Comando Vermelho. Como explica Rodrigo Pimentel, ex-capitão do BOPE: "Ali, a denominada 'Falange LSN' emergiu como pedra fundamental para o nascimento do Comando Vermelho, inaugurando uma era na qual o cárcere deixava de ser somente um local de punição para se tornar uma verdadeira fábrica de facções."

A fragmentação interna e as disputas por território levaram ao surgimento de outras organizações criminosas, como o Terceiro Comando Puro e Amigos dos Amigos. Paralelamente, nas comunidades da Zona Oeste, surgiram as milícias, inicialmente vendidas como "grupos de autodefesa" contra o tráfico, mas que logo se revelaram tão ou mais violentas que as facções que combatiam. "O morador saía da ditadura do tráfico para ir para a ditadura das milícias", resume Pimentel.

O domínio territorial dessas organizações criminosas se consolida através de quatro eixos principais, conforme explica o especialista Alessandro Visacro: controle do sistema normativo (imposição de regras próprias), domínio de recursos (extorsão e controle de serviços básicos), estabelecimento de "zonas de silêncio" (repressão a informantes) e redefinição de padrões culturais (glamourização do crime através de bailes funk e outros meios).

Nos últimos anos, tentativas de conter a violência policial, como a ADPF 635 (conhecida como "ADPF das Favelas"), tiveram resultados contraditórios. Embora a letalidade policial tenha diminuído significativamente, de 1.814 mortes em 2019 para 699 em 2024, as facções aproveitaram a redução das operações policiais para expandir seu domínio, aumentando o número de barricadas e estendendo seu controle para além das favelas, chegando a bairros como Jacarepaguá.

Atualmente, o problema ultrapassa as fronteiras do Rio de Janeiro. O Comando Vermelho, por exemplo, já está presente em 23 unidades federativas do país, transformando um problema local em uma questão de segurança nacional. Como afirma o Procurador de Justiça Marcelo Rocha, "o Rio de Janeiro é a face do Brasil para o mundo e o lar de muita da nossa história e cultura", mas hoje vive sob o jugo do medo e da insegurança.

A complexidade desta guerra urbana vai muito além dos confrontos armados visíveis. O domínio territorial exercido pelas organizações criminosas no Rio de Janeiro constitui uma forma sofisticada de insurgência, que desafia a soberania do Estado brasileiro em seu próprio território. Como revela o policial penal Marcelo Oliveira, as facções exercem controle não apenas nas ruas, mas também dentro do sistema carcerário, onde desenvolveram uma estrutura de poder paralela que pressiona o governo e influencia políticas públicas.

A expansão do controle das facções para o "asfalto" representa uma nova e alarmante fase deste conflito. Segundo investigações recentes, o Comando Vermelho tem cobrado "taxas de barricada" e pedágios de moradores em bairros como Jacarepaguá, enquanto grupos criminosos impõem monopólios sobre serviços de internet em diversas áreas da cidade e da Baixada Fluminense. Este fenômeno demonstra como o poder paralelo ultrapassou as fronteiras das comunidades marginalizadas.

Outro fator preocupante é a migração de líderes de organizações criminosas de outros estados para o Rio de Janeiro. De acordo com dados oficiais, existem 249 líderes do tráfico de drogas de outras unidades federativas escondidos em favelas cariocas, coordenando operações nacionais a partir destes territórios. A relativa tranquilidade proporcionada pelas restrições às operações policiais, incluindo a necessidade de aviso prévio, tem facilitado esta centralização do comando criminal na cidade.

O Secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, Victor dos Santos, reconhece que houve avanços com a ADPF 635, mas também aponta problemas significativos, como a incerteza jurídica gerada nos primeiros meses após a restrição das operações a casos excepcionais. "Combatemos sintomas, e não as causas", ecoa a frase do ministro Gilmar Mendes, ilustrando o desafio de encontrar soluções efetivas para um problema estrutural.

A influência das organizações criminosas se estende também ao campo informacional. Através da coerção, cooptação e manipulação da opinião pública, as facções conseguem normalizar sua presença e deslegitimar iniciativas governamentais de retomada territorial. Esta guerra informacional aproveita-se de preocupações legítimas sobre direitos humanos para criar narrativas que favorecem a manutenção do status quo, onde o poder paralelo continua a prosperar.

Os números da violência no Rio de Janeiro são comparáveis aos de zonas de guerra declarada. Em algumas comunidades, o arsenal bélico inclui fuzis de assalto, granadas e até armamentos antiaéreos. As disputas entre facções rivais e os confrontos com forças de segurança resultam em centenas de mortes anualmente, muitas vezes atingindo civis inocentes que apenas tentam sobreviver em meio ao fogo cruzado.

A solução para este cenário complexo exige mais do que abordagens simplistas. Como demonstra a história da cidade, desde as primeiras invasões estrangeiras até as atuais disputas territoriais, o Rio de Janeiro sempre foi palco de conflitos que moldaram sua identidade. A recuperação deste "paraíso em chamas" demanda estratégias multidimensionais que reconheçam a complexidade do domínio territorial exercido pelas organizações criminosas.

Enquanto isso, milhões de cariocas continuam reféns desta guerra invisível, sonhando com o dia em que poderão simplesmente voltar para casa em segurança. Como conclui o documentário da Brasil Paralelo: "No contexto de violência, perda de legitimidade do Estado, insegurança e desesperança, o carioca (e o brasileiro) anseia acima de tudo, pela possibilidade de poder voltar para casa e para sua família incólume. Apenas assim, a cidade maravilhosa poderá reviver um estado à altura de seu nome."

Com informações Brasil Paralelo

Por Ultima Hora em 23/04/2025
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