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Tenho o hábito de procurar semanalmente conversar com pessoas envolvidas com diversos temas a fim de ampliar minhas perspectivas. Essa semana, troquei impressões com uma querida amiga, Irene Ciccarino, com quem já realizei algumas publicações científicas em revistas e congressos no Brasil e no exterior, acerca de políticas públicas e gestão. Conversávamos que está cada vez mais evidente que pobreza é um projeto político e econômico no Brasil e no mundo. Ela não só concordou como me trouxe o seguinte dado: “Allan, quero te lembrar que, em 2015, a ONU estimou que 239 bilhões de euros erradicariam a fome no mundo. O quanto isso representa para o 1% que detém 99% dos recursos?”
Pois bem, como curioso que sou, fui atrás dos dados. Se 239 bilhões de euros ao ano seriam suficientes para acabar com a fome até 2030, hoje vemos que a fome aumentou vertiginosamente no planeta e que 239 bilhões de euros ao ano seriam suficientes para acabar com a fome até 2030, os mais ricos do planeta ganharam impulso no crescimento de suas fortunas com a pandemia, especialmente os bilionários proprietários de empresas de tecnologia, os quais ampliaram seus mercados durante o período de maior confinamento. Para se ter uma ideia, o dono da Amazon, Jeff Bezos, ultrapassou os 200 milhões de dólares (169 milhões de euros) de patrimônio líquido no primeiro semestre da pandemia no ano passado — quase o equivalente a toda a riqueza produzida em Portugal num ano.
Segundo relatório mundial da ONU, em 2014, havíamos saído do mapa da fome. Hoje, pela primeira vez em 17 anos, cerca de mais da metade da nossa população não tem segurança de comida no prato. A Rede Penssan, que reúne pesquisadores na área de segurança alimentar, estima que são 116,8 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar no país. Somente no ano passado, foram 19 milhões de pessoas atingidas pela fome. Pasmem, pois é quase o dobro do que havia em 2018 (quando voltamos a aparecer no relatório da ONU), porque o IBGE revelou 10,3 milhões de pessoas nessa situação. De outra parte, devido à pandemia, o Brasil dos privilégios e acesso desigual às oportunidades de trabalho, negócios, renda e financiamentos, registrou a incrível marca de incluir 11 novos bilionários na lista da Forbes, entre eles estão: os irmãos Safra, David Vélez e Guilherme Benchimol.
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Os descartados e a farsa do mérito
É obsceno verificarmos tanta disparidade social e acúmulo de riqueza. As 26 famílias do ranking das bilionárias do planeta conseguiriam salvar a vida de 820 milhões de pessoas, significando que essas pessoas não morreriam de fome. Meu argumento não é para que os bilionários deixem de lucrar ou tenham seus patrimônios confiscados pelo poder público, no entanto, apenas algumas atitudes positivas ou de filantropia poderiam erradicar a fome e ajudar a expandir o Estado de bem-estar social. É mais sobre democratizar direitos do que sobre coibir privilégios, porque essas pessoas continuariam extremamente ricas e poderosas. Em nada afetaria suas empresas ou estilo de vida.
Esses dados que apresentei desnudam um projeto malicioso e dissimulado. Friedrich Engels explicaria essa situação como homicídio disfarçado contra aqueles que não podem se defender. Mas a verdade é que os assassinos não se enxergam como tal, pois o crime é por omissão. O fato é que o capitalismo de abundância não cabe mais nem para o próprio capitalismo.
Portanto, não restam dúvidas que precisamos construir e ampliar os níveis de proteção social no BRASIL e no mundo. Se a pandemia, especialmente nos estratos populares, da sociedade agravou as desigualdades e limitou a capacidade da população de acessar ou gerar renda, torna-se urgente e necessário a criação de um Programa de Renda Básica Universal como mecanismo de proteção social e segurança alimentar para o povo. Enxergar e dar de comer aos invisíveis é o primeiro passo para mitigação dessa situação aguda que vivemos atualmente.
Por fim, que fique claro: a filantropia não é suficiente. O necessário seria que esses bilionários pagassem impostos sobre suas faraônicas fortunas. O Estado brasileiro como um todo, por sua vez, deveria se preocupar mais em redistribuir recursos e transformar urgentemente esse fracasso social num desafio coletivo de transformação e atenção aos mais pobres do que proteger os indecorosos e vulgares privilégios dessa turma.
Fotos: Reprodução/Internet e Acervo Pessoal.
Allan Borges é Mestre em Bens Culturais e Projetos Sociais pela FGV.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Tribuna da Imprensa Digital e é de total responsabilidade de seus idealizadores.
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