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A distopia que tomou conta do Brasil, nos últimos dez anos, teve sua primeira exposição na luta pelos vinte centavos.
Os ódios e intolerâncias estavam dormitando em uma parcela social e apenas esperavam uma oportunidade para virem à luz.
Perderam a vergonha, quando as falas contra as cotas raciais foram ditas em alto e bom som por quem representava aqueles mesmos ódios e intolerâncias. Sentindo-se, então, representada, essa parcela social riu da ofensa de que negros seriam pesados por arrobas, e celebrou a promessa de que indígenas e quilombolas não teriam terras demarcadas ou tituladas. Mais tarde, essas pessoas festejaram a retirada das personalidades negras da Fundação Cultural Palmares.
Estavam cansadas de reclamar que os aeroportos pareciam rodoviárias, pois estavam cheios de “gente diferenciada”, e que as empregadas domésticas estavam indo à Disneylândia.
Essa distopia que o país conheceu, portanto, surgiu da aversão às políticas públicas de ação afirmativa e de inclusão implementadas desde 2003 e que, há dez anos, começaram a produzir resultados.
Após 135 anos do fim da escravidão de africanos e de seus descendentes, a fala de Joaquim Nabuco ainda ecoa como se tivesse sido dita ontem: "A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil".
Para mudar essa triste característica, em 20 de julho de 2010, foi sancionada a Lei 12.288, que dispõe sobre o Estatuto da Igualdade Racial. Foi a primeira lei, desde o século XIX, que estabeleceu direitos específicos para a população negra brasileira.
Foi oriunda de projeto de lei do Senador Paulo Paim que tramitou por cerca de vinte anos no Congresso Nacional até sua aprovação e sanção sem vetos pelo Presidente Lula. Essa legislação é de grande importância para o Brasil: seus comandos legais incorporaram ao direito brasileiro as ações afirmativas, das quais as cotas são uma modalidade, e que têm, como princípio, a igualdade material, ou seja, para além da igualdade no papel.
Essa legislação incluiu, ainda, o princípio da autodeclaração e contribuiu para a elevação da autoestima e para o combate aos estereótipos e aos estigmas remanescentes da escravidão, que tentam reduzir a importância da contribuição da afrodescendência para o Brasil.
Também prevista no Estatuto, a proteção às religiões de matriz africana, por equiparação em direitos com os demais cultos, é um avanço civilizatório, bem como o são a garantia dos direitos das comunidades remanescentes de quilombos e a titulação de suas terras.
Finalmente, o Estatuto prevê também o reconhecimento dos mestres de capoeira, que podem contribuir para a implementação da lei 10.639, que dispõe sobre o ensino da história da África. Além disso, a participação no Plano Plurianual, conforme previsto no artigo 56 do Estatuto, e a integração de estados e de municípios ao Sistema Nacional de Igualdade Racial, para que possam acessar recursos, é também fundamental.
Por todas essas previsões e determinações, regulamentar o Estatuto é necessário, para tornar disponível o direito estabelecido na lei.
A abolição da escravidão, em 1888, foi um marco no século XIX; o Estatuto da Igualdade Racial é o marco para a igualdade de oportunidades no século XXI.
Por Eloi Ferreira de Araujo - Advogado, ex-ministro da Igualdade Racial e ex-presidente da Fundação Cultural Palmares
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