País pagou R$ 2,4 bi em 4 anos a juízes que não tiraram 60 dias de férias

País pagou R$ 2,4 bi em 4 anos a juízes que não tiraram 60 dias de férias

Juízes têm direito a 60 dias de férias por ano e, quando não usufruem de tudo, podem pedir uma indenização pelos dias pendentes —ou seja, "vender" parte das férias. Os dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) revelaram que tribunais gastaram pelo menos R$ 2,42 bilhões em quatro anos —de setembro de 2017 a setembro de 2021— com pagamentos dessa indenização. Não existe ilegalidade, pois se trata de um direito dos juízes.

O valor bancaria por quase 30 anos o programa de distribuição gratuita de absorventes higiênicos, considerando o custo anual de R$ 84,5 milhões estimado pela Câmara. O programa foi vetado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Os recursos também correspondem a quatro vezes o valor que o governo cortou dos investimentos em pesquisas científicas (R$ 600 milhões).

O levantamento aponta que, nesse período, há juízes que receberam mais de R$ 1 milhão por férias que não usufruíram. Os valores foram corrigidos pela inflação acumulada (IPCA). Os dados partem de setembro de 2017 porque o CNJ só disponibiliza os números a partir dessa data.

Representantes da categoria e tribunais dizem que as indenizações são pagas dentro da lei, de acordo com o período de férias garantido aos magistrados. Afirmam também que as regras para concessão da indenização ficaram mais rígidas a partir de julho de 2021, depois de nova orientação do CNJ.

Especialista diz que a "venda de férias" virou uma remuneração acima do teto disfarçada de indenização, e que o direito a 60 dias é um privilégio que deveria acabar.

Membros do Ministério Público também têm 60 dias de férias por ano. Procurado, o CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público), mas o órgão afirmou que não possui dados consolidados sobre as indenizações.

O Congresso discute atualmente uma reforma administrativa enviada pelo governo, que tem entre os objetivos declarados reduzir privilégios de servidores. Mas tanto no texto do governo quanto na versão mais atualizada, aprovada em Comissão Especial da Câmara, juízes e membros do MP ficam de fora —ou seja, não seriam afetados. Segundo o relator do projeto, deputado Arthur Maia (DEM-BA), há um acordo entre lideranças para incluir juízes e membros do MP na reforma quando o texto for ao plenário. Assim, apenas juízes e membros do MP que tomassem posse após a reforma perderiam o direito a 60 dias de férias.

A lista do CNJ traz os nomes de juízes que receberam alguma remuneração desde setembro de 2017, inclusive os já aposentados. Muitos magistrados receberam no momento da aposentadoria a indenização referente a todos as férias não tiradas ao longo da carreira.

Dos dez juízes que mais receberam, seis são do TJ-TO (Tribunal de Justiça do Tocantins). No total, o tribunal gastou mais de R$ 56 milhões com esse tipo de indenização.

A lista de magistrados que mais receberam tem quatro aposentados: José de Moura Filho, Rogério Valle Ferreira, Hamilton Luiz Scarabelim e Orloff Neves Rocha. Entre os que estão na ativa, Euripedes Lamounier foi presidente do TJ-TO entre 2017 e 2019, e Carlos Alberto França é presidente do TJ-GO (Tribunal de Justiça de Goiás).

Por meio da assessoria dos tribunais, de associações de magistrados e de outros meios, a reportagem tentou contato com os dez juízes que mais receberam a indenização.

O TRT-3 (Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais) respondeu que Rogério Ferreira se aposentou em 2019 e recebeu R$ 511,8 mil à época. Mas os números do CNJ indicam que, além desse pagamento em outubro de 2019, houve um de R$ 482,8 mil em dezembro do mesmo ano, em valores nominais. Questionado sobre a segunda indenização, o TRT-3 não respondeu. A reportagem tentou contato com o juiz aposentado também por meio da Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho), mas associação informou que ele não atendeu aos telefonemas.

O TJ-GO declarou que sempre cumpre a legislação e que os atos praticados são publicados nos diários oficiais e no Portal da Transparência.

A Asmego (Associação dos Magistrados do Estado de Goiás) afirmou que os valores pagos ao desembargador aposentado Orloff Neves Rocha e a Carlos Alberto França se referem a férias não tiradas ao longo de mais de 20 anos de carreira, e que as indenizações estão de acordo com a legislação vigente. "São indenizações recebidas porque os magistrados deixaram de usufruir de um direito constitucional, devido à ausência de quadros para os substituir", disse em nota.

O TRT-15 (Tribunal Regional do Trabalho de Campinas-SP) afirmou que Hamilton Luiz Scarabelim se aposentou em 2019, quando recebeu a indenização por 460 dias de férias não gozadas em 25 anos de trabalho (média de 18 dias por ano), além de 87 dias em que estava de férias, mas trabalhou. O tribunal declarou que as indenizações foram calculadas conforme decisão do CNJ.

Em nota, Scarabelim disse que os valores são referentes a férias não usufruídas durante toda a carreira. "Apenas por ocasião de minha aposentadoria, após 26 anos de judicatura, pude receber esses períodos de férias atrasados, com os respectivos terços constitucionais, seguindo normas em vigor", afirmou.

O TJ-TO declarou que "as indenizações de férias são pagas aos magistrados que deixam de gozar suas férias e continuam a serviço do Judiciário, de acordo com as regras do CNJ".

A Asmeto (Associação dos Magistrados do Estado do Tocantins) afirmou que os dados "não correspondem à realidade", e que o TJ-TO não pagou nenhuma "verba indevida" aos juízes. Questionada se estava afirmando que as informações disponibilizadas pelo CNJ estão incorretas, a associação respondeu que os dados obtidos pela reportagem no canal de transparência do conselho "divergem dos dados primitivos informados pelo tribunal ao CNJ". A entidade não respondeu, então, quais seriam os dados corretos.

 

Tribunais sem dados sobre indenização de férias
Além de todos os TRE (Tribunais Regionais Eleitorais) e do Conselho da Justiça Federal, que trabalham com juízes cedidos de outros tribunais e por isso não pagam indenizações, há cinco tribunais que, segundo os dados do CNJ, não tiveram esse tipo de gasto:

Tribunal Regional do Trabalho da 21ª Região (TRT-21, Rio Grande do Norte)

TRT-10 (Distrito Federal e Tocantins)

TRT-24 (Mato Grosso do Sul) TJ-PB (Tribunal de Justiça da Paraíba)

TRT-8 (Pará e Amapá).

A reportagem perguntou aos cinco tribunais se não houve pagamentos ou se a informação não foi repassada ao CNJ.

O TRT-21 afirmou que é um tribunal de pequeno porte e que a indenização é paga apenas em caso de morte ou aposentadoria do juiz —o que justifica longos períodos sem pagamentos. O TRT-10 também declarou que não pagou indenizações de férias desde setembro de 2017.

Já o TRT-24 disse que "há uma inconsistência nos dados do CNJ", e que o tribunal pagou indenizações de férias a quatro juízes em 2019 e 2021. O TRT-24 afirmou que está "tomando providências" para que as informações que estão no site do CNJ sejam as mesmas que constam no portal da transparência do próprio tribunal.

O TRT-8 disse que encontrou um problema nos registros dos valores de indenizações de férias, mas que fez apenas três pagamentos do tipo em 2019, 2020 e 2021. O tribunal afirmou que está "providenciando a correção" das informações.

O TJ-PB não respondeu.

Questionado o CNJ sobre os tribunais que não têm dados no site, e também perguntou ao órgão se há algum tipo de punição caso as informações não sejam enviadas. O órgão não respondeu até a publicação desta reportagem.

Bruno Carazza, doutor em direito e mestre em economia, diz que as férias de 60 dias para juízes surgiram na década de 1970, porque a categoria tinha um trabalho solitário e exaustivo, principalmente no início da carreira, em cidades isoladas. Mas, segundo ele, hoje o privilégio não se justifica, pois os juízes têm assessores, técnicos e estagiários, e os tribunais estão melhor estruturados.

“O instituto [60 dias de férias] foi desvirtuado. Virou um penduricalho, um aumento salarial travestido de auxílio que, além de tudo, não é tributado. Não incide Imposto de Renda sobre a venda de férias, por ela ser considerada uma indenização”. Bruno Carazza, doutor em direito

Em tese, juízes só podem converter dias de férias em indenização se a justificativa para não tirar o descanso for o excesso de serviço. Para Carazza, a regra expõe uma contradição. "Há mais trabalho porque juízes trabalham um mês a menos, fora o recesso. É um ciclo vicioso. Vai contra princípios constitucionais como moralidade e eficiência.".

Guilherme Guimarães Feliciano, professor da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo) e juiz do trabalho, defende que o direito a 60 dias de férias é uma compensação justa conquistada por magistrados e membros do MP, que não recebem por horas extras, assim como outras categorias conquistaram direitos específicos, como os bancários e os advogados, que têm jornada de trabalho reduzida.

Feliciano afirma que a indenização deveria ser exceção, porque os 60 dias de repouso são importantes para a saúde dos juízes. Segundo o juiz, quando há grandes indenizações, isso reflete um problema de gestão do tribunal.

Em tese, pode haver abuso nos pedidos de indenização. Precisamos de gestão e controle. Esses controles são mais apertados nos tribunais federais. Embora todos os tribunais tenham a mesma independência, o fato é que os TJs [estaduais] têm autonomia maior.” Guilherme Guimarães Feliciano, juiz do trabalho

A AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros) defende o direito a 60 dias de férias e diz que eventuais desvios no pagamento de indenização têm sido enfrentados pelo CNJ.

A associação afirma que uma decisão de julho de 2021 no CNJ aumentou o controle sobre os pedidos de indenização, "razão pela qual os dados apresentados não retratam a atual disciplina do direito a férias".

Mas o site do CNJ informa uma regra diferente. Ele diz que está em vigor uma resolução que permite converter apenas um terço do período de férias (20 dias) em indenização. A reportagem questionou o CNJ sobre qual é a regra válida, mas não obteve resposta.

60 dias de férias podem cair com a reforma administrativa?
O direito a 60 dias de férias para juízes está previsto na Lei Orgânica da Magistratura, de 1979, e a Constituição diz que mudanças na estrutura do Poder Judiciário só podem partir do próprio Judiciário. Mas e se o Congresso mudar a Constituição?

Especialistas dizem que não há uma resposta clara para essa pergunta, pois há precedentes divergentes.

A reforma da Previdência de 1998, por exemplo, mexeu com direitos de juízes via emenda à Constituição, sem iniciativa do Poder Judiciário, e segue em vigor.

O Congresso, porém, já tentou criar novos tribunais federais, e o STF considerou a iniciativa inconstitucional porque não partiu do Judiciário.

A proposta de emenda à Constituição de reforma administrativa em debate na Câmara limita a 30 dias por ano as férias dos servidores públicos. Porém, até agora, o texto não afeta juízes e membros do MP.

Problemas na base de dados dificultam transparência
O economista Gil Castello Branco, da Associação Contas Abertas, que tem o objetivo de estimular a transparência de órgãos públicos, critica o modo como as informações sobre as indenizações são apresentadas no portal do CNJ. Além do caso do TRT-24, que realizou pagamentos que não constam no site, há outros problemas na base de dados, como a falta de padronização da grafia dos nomes dos juízes. São elementos que, segundo ele, dificultam o controle social.

“A transparência não é um favor, é uma obrigação do gestor. Essas informações deveriam ser divulgadas de forma muito clara. Talvez não seja por acaso que isso muitas vezes não seja feito, mas sim para não evidenciar esse privilégio, que são as férias de 60 dias”. Gil Castello Branco. (Do Uol)

Por Ultima Hora em 17/10/2021
Publicidade
Aguarde..