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Por Beatriz Duran, no El Salto | Tradução: Rôney Rodrigues
Precarização massacra o corpo e a mente e o desemprego é gatilho seguro para a ansiedade e depressão. E se o Estado redistribuir recursos capazes de dispensar as jornadas massacrantes e promover o bem-viver, a saúde mental e o cuidado?
A instabilidade econômica, a falta de rendimentos e o medo do desemprego são situações precursoras de problemas de saúde mental. Quando a vida está atrelada à precariedade laboral, a experiência humana parece estar voltada exclusivamente para atividades de sobrevivência. Da mesma forma, torna-se impossível que as pessoas tenham tempo e disponibilidade para práticas que desenvolvam o raciocínio, para se encontrarem e para o pertencimento — o poder de repensar a ordem estabelecida e melhorar a vida. A incerteza econômica ligada ao acesso e manutenção de um emprego, gera contínuos desconfortos e inseguranças psicológicos. Na mesma linha, podemos dizer que o trabalho — em seu sentido mais amplo — é um precursor de problemas e doenças mentais devido à deterioração das condições de trabalho. Os empregos são feitos de demandas que a maioria dos trabalhadores não consegue administrar.
O trabalho produz relações assimétricas: as pessoas são despojadas de seu poder de barganha e de sua liberdade. Trabalhar no contexto atual significa transitar entre contratos-lixo, ritmos acelerados que não permitem descanso e, ao mesmo tempo, exploram as pessoas até que elas adoeçam. Precisamente, as características do trabalho na era do capital tendem a intensificar a deterioração da saúde. A precariedade, por vezes, é invisível aos olhos da sociedade devido à sua normalização: uma cadeia de empregos precários sem possibilidade alguma de chegar a ter boas condições de trabalho. Podemos dizer que a pobreza está diretamente ligada ao trabalho precário, não apenas ao desemprego, portanto as pessoas são consideradas pobres mesmo tendo um emprego “estável” —que não cobre as necessidades pessoais e de seu entorno mais próximo. No entanto, esta “dança da precariedade” pode alimentar a ideia malfadada de que o trabalho determina “quem somos” e ser um foco de insatisfação, incerteza e dor.
O preço da desigualdade é alto, muito alto, principalmente para 99% das pessoas que não têm os recursos de que precisam. O aumento da precariedade laboral e a falta de oportunidades andam de mãos dadas numa sociedade em que uma em cada quatro pessoas — como é o caso de Espanha — corre o risco de enfrentarem a exclusão social devido a problemas relacionados com o acesso ao emprego e à habitação. O desemprego sempre foi um elemento característico do mercado de trabalho espanhol que tem uma das taxas mais altas da União Europeia – de acordo com a EPA [Pesquisa de População Ativa] cerca de 11,9 milhões de pessoas são precarizadas; 9 milhões são assalariadas; 1,2 milhões são autônomas e 2,6 milhões estão desempregadas. Somado a esses dados devastadores, está o problema da disparidade salarial a partir da qual as mulheres não conseguem decidir sobre suas próprias vidas devido aos péssimos salários que não cobrem suas necessidades: desequilíbrios salariais entre sexos e gêneros ofuscam a independência e o bem-estar social, deixando as mulheres na linha da pobreza. É assim que esta tendência de empobrecimento da sociedade não termina quando se consegue um emprego: “acesso ao trabalho em condições precárias e inflexíveis que não possibilitam sair dessa situação de exclusão social de quem se mantém com recursos íntimos” de acordo com o relatório do CC OO [Comissão Operária da Espanha] no ano passado. O flagelo da crise econômica é sentido no âmbito do trabalho pela falta de redes de segurança e desarticulação de recursos para a população menos favorecida.
O recente relatório do PRESME [Comisión de personas expertas en el impacto de la precariedad laboral en la salud mental], elaborado por um grupo de especialistas sobre o impacto da precarização do trabalho, afirma que a desigualdade social e econômica, a discriminação e os ataques à democracia são problemas globais de saúde pública. A atual tendência de queda dos salários e do desemprego reforçam as desigualdades em relação à saúde mental. “Da população ocupada, cerca de 17,3 milhões são assalariados, dos quais 46,9% podem ser considerados trabalhadores precarizados (8,1 milhões de pessoas)”. Atualmente, o salário recebido por um trabalho não cobre as necessidades básicas de grande parte da população, assim como é muito difícil ter recursos para cobrir a assistência diante da mal-estar psíquico. Um sistema público de saúde deficiente e cada vez mais privatizado não cobre ou sequer oferece soluções para tratar os problemas mentais das pessoas.
Portanto, a profunda precariedade sob a qual a maioria das pessoas em todo o mundo trabalha, infiltra-se nos corpos e gera vidas inseguras, envelhecimento precoce e morte prematura. A disciplina do trabalho é invisível e altamente nociva à saúde: uma estigmatização dos pobres e precarizado em constante adoecimento mental. Da mesma forma, esse sofrimento psíquico aumenta quando há um desconhecimento sobre o que leva tantos indivíduos a aceitarem o inaceitável em situações de exploração. Essa posição de desamparo é intensificada com os discursos meritocráticos: “tem que se esforçar mais para conseguir o pleno emprego”.
O sociólogo David Casassas aponta que se as pessoas chegam “despossuídas” ao mundo do trabalho, dificilmente terão forças para exigir os seus direitos: perde-se a capacidade de autodeterminação individual e coletiva. A saúde mental depende de várias situações cotidianas que a determinam – uma combinação de múltiplos fatores sociais. Como explica o PRESME, existem evidências científicas que sustentam as teorias sobre insegurança no trabalho e problemas mentais. A pobreza laboral é incentivada por “condições socioeconômicas, decisões políticas ou legislativas e estratégias ou práticas trabalhistas de muitas empresas”.
“Devemos abrir debates e colocar em prática políticas tão essenciais como a gestão do tempo e a distribuição do trabalho, a garantia do trabalho, a implementação de uma renda básica universal ou garantida e, principalmente, o desenvolvimento da democracia econômica nas empresas para avançar na realização de atividades socialmente necessárias e trabalho ecologicamente sustentável” (PRESME, 2023).
Uma Renda Básica Incondicional como aliada da saúde mental
Não é de estranhar que a falta de renda piore progressivamente as condições de vida: afeta todas as áreas do desenvolvimento, especialmente na questão da saúde mental. Diante desses fenômenos que reduzem a expectativa de vida, a renda básica universal e incondicional (RBI) poderia dar uma resposta aos dramas cotidianos sofridos pela maioria. Com essa questão, abre-se um amplo e necessário debate, pois há um grande desconhecimento sobre o que está sendo proposto. Especificamente, fala-se em renda básica como uma alocação monetária para toda a população de forma individual, universal e incondicional: sem qualquer tipo de condição. A Renda Básica Incondicional não deve ser confundida com subsídios ou auxílios condicionados por outras variáveis, ou seja, que as pessoas devam cumprir uma série de requisitos para obter o auxílio oferecido — a maioria incompatível com outras formas de subsídios. Desde a EUREKA (Rede de Ativista pela Renda Básica Incondicional) é denunciada a tendência de manipular os objetivos da renda básica para que as pessoas que realmente precisam dela se oponham.
Uma renda básica como a proposta por alguns autores — Daniel Raventós entre outros — mudaria a vida de muita gente. Esse novo direito fundamental poderia dar uma reviravolta nas relações humanas: não só acabaria com o problema da pobreza, mas também mostraria que trabalho não precisa estar diretamente voltado para o mercado. No caso de uma pessoa obter um rendimento base de 900 euros [R$ 4.750] todos os meses, por ser incondicional e universal, poderá ter outros rendimentos por meio do trabalho ou de alguma pensão/ajuda que lhe seja de direito. Essa garantia de renda poderia implicar um vínculo com o trabalho sem a pressão contínua de uma vida precária, além de eliminar a obrigação de suportar condições de exploração: as pessoas teriam mais poder de barganha em relação às condições impostas pelos empresários.
O economista e ativista pela renda básica, Daniel Raventós, explica que há uma série de “objeções” por trás da questão da renda básica. Seriam mitos e especulações sobre uma suposta quebra de reciprocidade: um impulso ao individualismo porque a renda básica poderia permitir que as pessoas dedicassem suas vidas integralmente “ao que quisessem” — sem compromisso ou colaboração coletiva. Mas esse descrédito é impulsionado pela desconfiança daquilo que a precariedade gera em relação aos outros e pelo medo dos empregadores de que os trabalhadores não aceitem mais condições precárias. Essas farsas ignorantes influenciam negativamente na percepção que as pessoas têm da Renda Básica. No entanto, ao longo da história, tem-se verificado que em projetos de distribuição de riquezas (e, também, de poder) prevalece o princípio da colaboração e responsabilidade social.
Em um documentário dirigido por Christian Todd, um projeto-piloto de Renda Básica é descrito na cidade de Anchorage [Alasca, EUA]. Com o campo de petróleo considerado o maior do mundo, a população experimentou um boom econômico nunca antes visto. No âmbito deste aumento de capital, foi estabelecida a melhor forma de destinar este dinheiro aos fundos sociais. Percebendo que o petróleo era uma mercadoria que poderia acabar em algum momento, e com ele o dinheiro, governadores e legisladores propuseram a criação de uma conta poupança: o Fundo Permanente do Alasca. Cada cidadão da área receberia uma renda básica definida a cada ano — entre 1.500/2.000 dólares. As companhias petrolíferas extraem a matéria-prima desta área natural e os cidadãos recebem uma compensação econômica. O povo da cidade vivenciou uma vida com facilidades que os permitiam ser prósperos com base em um patrimônio comum e, apesar das campanhas de difamação contra a renda básica, eles não pararam de trabalhar, mas viveram sem medo da precariedade ou da demissão.
Com o sistema que temos atualmente, enfrentamos uma série de problemas psicológicos derivados da pobreza e da falta de acesso aos recursos mínimos para a existência. A Renda Básica reduziria os níveis de exclusão e aquela sensação de viver sob constante ameaça. Mas quais são as objeções que as pessoas têm à renda básica? Raventós enumera o seguinte: em primeiro lugar, ao som do mito “vamos manter os preguiçosos e os parasitas” é comum especular-se que as pessoas com necessidades produzem muitos custos, e que não chegam a reembolsar esses lucros para os cofres do Estado. Nesta perspectiva, tenta-se estigmatizar o pobre para negar-lhe o direito a uma existência material garantida.
A outra coisa que o economista expressa é o medo de que “ninguém trabalhe”, referindo-se à perda do senso de responsabilidade socioeconômica. Mas a RBI não estabelece que a solução é parar de trabalhar, mas que por meio dessa medida os direitos trabalhistas das pessoas podem ser resguardados. Deve-se levar em conta que o trabalho vai além do que atualmente é estabelecido como remunerado: refere-se ao trabalho doméstico e de cuidado que as mulheres costumam fazer de forma gratuita. A renda básica, nesse caso, possibilitaria combinar esse bem material com subsídios ou salários sem ser condicionado por labirintos administrativos onde os recursos não chegam a quem deveria. Raventós argumenta que há uma grande capacidade técnica para reduzir a jornada de trabalho – e a capacidade produtiva atual permitiria isso.
“ …o modelo de renda básica universal tem sido proposto como uma estratégia potencial para reduzir o impacto da precariedade do trabalho na saúde mental dos trabalhadores. Até o momento, os experimentos sociais foram realizados (ou estão em andamento) no Canadá (MINCOME, Ontário), Estados Unidos (Alasca, Stockton, Eastern Band of Cherokees), Finlândia, Escócia, Alemanha, Espanha (B-MINCOME de Barcelona; e Catalunha), Irã, Namíbia, Índia, Quênia, Macau e Brasil (Maricá). Na maioria dos casos houve melhora da saúde mental dos participantes, com redução do estresse psicológico e do uso de drogas, álcool e tabaco”. (PRESSME, 2023)
A última objeção que Raventós explica tem a ver com o típico dilema de que a renda básica “não pode ser financiada”. Sobre essa questão, o economista baseia-se em estudos que comprovam a possibilidade de estabelecer uma renda básica se for feita uma reforma tributária, sem ter que tocar em outros itens — ou subsídios. Com isso, a possibilidade de renda básica seria garantida a partir de impostos sobre grandes fortunas; e seria produto da redução de subsídios a questões desnecessárias como a realeza [o sistema de governo na Espanha é a monarquia parlamentarista] entre outros. Em suma, os ricos receberão uma renda básica, mas pagariam um imposto equivalente ao que recebem e, ainda mais, “os ricos não ganham nada”. O que jamais seria tocado seriam as remunerações públicas essenciais para a sociedade, como as pensões, os auxílios públicos, a gratuidade do sistema de saúde, menos ainda se acabaria com o sistema público de previdência. A renda básica — como explica Kathi Weeks — poderia ser remunerada por meio de várias medidas, entre as mais importantes: “Um sistema tributário simplificado, mais progressivo e eficaz para pessoas físicas e corporações”.
“Sistema tributário progressivo, onde quem ganha mais paga mais. Um imposto sobre bens de luxo e produtos poluentes e poupança, simplificando uma série de subsídios atuais e serviços públicos associados que se tornaram obsoletos — como a monarquia”. (EUREKA, 2023)
Portanto, fora de qualquer especulação, Daniel Raventós explica que seria possível implementar uma renda básica — com dados econômicos de comitês de especialistas que sustentam sua teoria. A medida representaria um avanço para as pessoas sobre o direito de decidir por sua economia e de que o bem-estar pode estar ao alcance de todos. Com uma Renda Básica, o nível de liberdade aumenta, justamente para que se possa escolher entre a vida imposta ou o que está mais de acordo com as tendências/necessidades de cada pessoa e do coletivo.
A Renda Básica não produziria preguiçosos, nem parasitas, mas sim pessoas sem a pressão e o peso da escravidão no trabalho. Uma RBI contribui para que as pessoas não tenham que viver sob o estigma de um auxílio que não supre nem o básico e para que os dramas da sobrevivência sejam reduzidos: o cotidiano minguante entre a ansiedade e a depressão. Um exemplo é evidente: para as mulheres, seria a oportunidade de não ter que tolerar violência no trabalho, assédios, condições humilhantes para conseguir um salário. Uma Renda Básica Incondicional seria uma solução para o problema da diferença salarial nos empregos e, por outro lado, uma libertação da dependência econômica em ambientes familiares que levam muitas mulheres a suportar situações de abuso ou maus-tratos por anos. As contínuas cargas de trabalho que as mulheres tem que enfrentar no dia a dia deterioram a sua saúde a nível físico, mental-comportamental e emocional. A ocupação permanente nas demandas externas tem um custo no cuidado à saúde da mulher. Em geral, a dupla presença em que dividem o cotidiano — trabalho em casa e em empregos — estabelece uma pressão constante, onde cuidar do outro é “um estado mental”: estar disponível 24 horas por dia.
Este estado de alerta permanente escraviza a mulher, não só em relação ao cuidado da família, mas também das pessoas dependentes que estão em seu entorno. Para essas mulheres, geralmente não há opção de encaminhamento ou acionamento de estratégias de corresponsabilidade por falta de recursos ou capacidade de gestão. A Renda Básica seria uma potente solução para as relações de dominação que são criadas pela precarização do trabalho e pelo abandono do cuidado pela sociedade: seriam fundos que permitiriam às mulheres se libertarem de determinados trabalhos e terem tempo sobrando para suas vidas. Seria uma espécie de reivindicação clara para que todas as pessoas tenham acesso não apenas aos recursos que trazem benefícios à coletividade — saúde, educação —, mas também que tenham tempo de qualidade para usufruir dos direitos fundamentais e, com isso, blindar o direito ao bem-estar da cidadania. A segurança que se adquire com uma renda incondicional seria o estímulo para que os grupos de mulheres trabalhadoras se libertassem de ônus e tivessem uma vida melhor. Portanto, a renda básica universal é um instrumento que pode até facilitar para que haja mais igualdade e desafiar a dupla jornada, concedendo mais dinheiro, tempo e liberdade às mulheres – e desvelando aquelas tendências econômicas que tornam precária a distribuição de renda.
Uma renda básica, segundo Raventós, ordenaria racionalmente os recursos econômicos que deveriam ser destinados às pessoas. Para que isso funcione, seria necessário estabelecer controles mais exaustivos para que a renda incondicional esteja à disposição dos beneficiários e não ocorram situações de abuso, fraude ou descaso: o silêncio administrativo.
A renda básica é fácil de caricaturar quando você não tem conhecimento total. No entanto, quando a proposta é compreendida, a renda incondicional pode ser vista como um meio de obter mais tempo fora do trabalho, desenvolver suas próprias habilidades e ter menos pressão no dia a dia. Por isso, como aponta Raventós, a renda básica teria o poder de mitigar problemas econômicos estruturais, reduziria a dívida, reforçaria a saúde pública, beneficiaria a economia do país, além de colocar a vida, o cuidado e a saúde mental no centro da política.
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