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A dúvida hamletiana “ser ou não ser” já não é mais o drama existencial que define nosso tempo. Vivemos hoje outro dilema, menos filosófico, porém mais urgente: ser ou consumir. E quem controla essa decisão?
Em nosso presente, a formação da vontade deixou de ser um ato íntimo e livre, passando a ser influenciada por algoritmos silenciosos, quase imperceptíveis. São sistemas que aprendem nossos desejos e temores em tempo real, ajustando-se continuamente para aumentar engajamento, cliques e, por consequência, receita.
Na prática, a subjetividade tornou-se refém de uma lógica publicitária.
O algoritmo escolhe por você
Plataformas digitais, como Facebook, YouTube, Instagram e TikTok, não se limitam a exibir conteúdos. Elas definem cuidadosamente o que cada usuário verá, com base em critérios pouco transparentes. Esses sistemas dão preferência a conteúdos que geram reações emocionais intensas — ainda que nem sempre informativos ou verdadeiros.
Pesquisas recentes demonstram que notícias falsas circulam até seis vezes mais rapidamente que informações verificadas, justamente por provocarem emoções fortes como medo, raiva ou surpresa. Aquilo que vemos, curtimos e compartilhamos, e até no que acreditamos, passa a ser definido por máquinas que sabem explorar nossos impulsos e vulnerabilidades.
O novo campo da publicidade: emoções e crenças
O Código de Defesa do Consumidor (CDC), importante conquista civilizatória, foi pensado para proteger o cidadão contra abusos comerciais. No entanto, esse código ainda não cobre uma nova realidade em que os produtos já não são apenas objetos, mas identidades.
Atualmente, algoritmos não vendem só tênis ou celulares. Vendem também certezas ideológicas, indignação política e a sensação de pertencimento afetivo. Tudo isso é alimentado por sistemas que recompensam extremos, transformando radicalismos em uma fonte altamente rentável.
Não é por acaso que discursos polarizadores, teorias conspiratórias e mensagens carregadas de ódio ocupam posições privilegiadas nas plataformas digitais. Esses conteúdos são mais baratos e convertem com mais velocidade.
O direito à integridade cognitiva
Frente a essa nova paisagem digital, defendo a necessidade urgente de reconhecermos um novo direito fundamental: o direito à integridade cognitiva.
Esse direito visa proteger o indivíduo contra a manipulação sistemática da sua consciência e opinião. Assim como protegemos os dados pessoais pela LGPD, precisamos preservar também nossa capacidade de formar opiniões genuínas, fora das bolhas e filtros algorítmicos que distorcem a realidade.
Trata-se de uma proposta ainda em amadurecimento, mas que já inspira marcos regulatórios internacionais, como o Digital Services Act europeu, e projetos que tramitam atualmente no Congresso Nacional brasileiro.
A quem cabe a responsabilidade?
Não é questão de censurar conteúdos. A responsabilização das plataformas não se refere ao que é dito, mas à forma como essas mensagens são artificialmente amplificadas por mecanismos de recomendação automatizados e pouco transparentes.
Se um algoritmo promove de forma sistemática discursos de ódio, desinformação ou mesmo incitações à violência, é justo que as plataformas respondam pelas consequências.
O mundo já caminha nessa direção. Na Alemanha, a legislação conhecida como NetzDG já prevê sanções às redes sociais que não removem conteúdo nocivo com rapidez. Na União Europeia, o Digital Services Act obriga as plataformas a adotarem políticas transparentes e sujeita seus algoritmos ao escrutínio público.
Entre a liberdade e o vício comportamental
É fundamental reconhecer, também, a delicada linha que separa liberdade de expressão e manipulação comportamental. A liberdade deixa de existir quando o indivíduo é submetido a estímulos contínuos que o afastam do debate racional, condicionando suas percepções a uma lógica meramente comercial e emocional.
Não se trata de proteger ideias específicas, mas de garantir a integridade do ecossistema no qual todas as ideias circulam.
Regular ou ruir
Eventos recentes — como ataques a escolas e invasões institucionais, impulsionados por conteúdos extremistas — evidenciam o custo social e democrático da falta de regulamentação clara dos algoritmos. Por trás dessas situações dramáticas está um modelo de negócio digital que se alimenta justamente do conflito, do extremismo e da polarização.
Se não fizermos nada agora, o debate público será definitivamente colonizado por interesses comerciais disfarçados de liberdade de expressão. Nossa democracia corre o risco real de ser corroída por dentro, refém de métricas de engajamento.
Ser ou consumir — eis a questão. Regular ou ruir — eis o nosso desafio.
* Professor de direito, advogado especialista em responsabilidade civil, tesoureiro da OAB-Búzios.
Contato: jorge@tardin.com.br
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