Transmissões de julgamentos do STF atrapalham, diz Des. Marcelo Buhatem (Presidente da Associação Nacional dos Desembargadores)

Marcelo Buhatem é presidente da Andes (Associação Nacional dos Desembargadores)

Transmissões de julgamentos do STF atrapalham, diz Des. Marcelo Buhatem (Presidente  da Associação Nacional dos Desembargadores)

A transmissão ao vivo de sessões do STF (Supremo Tribunal Federal) incentiva o “ativismo judicial” de muitos magistrados no país, disse Marcelo Buhatem. Ele foi eleito na 5ª feira (19.ago.2021) presidente da Andes (Associação Nacional dos Desembargadores) até 2024. Estava no cargo desde junho de 2020. Ele é desembargador no Rio de Janeiro.

A Andes representa desembargadores, que são os juízes de 2ª instância nos Tribunais de Justiça dos Estados, e os juízes dos TRFs (tribunais regionais federais), responsáveis pela 2ª instância da Justiça Federal.

Buhatem diz que o “protagonismo” do STF leva muitos juízes a tomar decisões que extrapolam suas funções. Defende que as transmissões de TV sejam no dia seguinte aos julgamentos, sem que apareçam os trechos de “refrega entre magistrados”, que considera negativos para a imagem da Justiça.

O presidente da Andes disse não se opor ao pedido de impeachment de ministros do STF. “O direito de petição é público, é autônomo”, afirmou. Concedeu entrevista ao Poder360. Mais tarde publicou uma nota (leia íntegra) sobre o tema em que disse ser necessária conciliação entre os Poderes.

Qual sua avaliação do conflito entre STF e governo?
Marcelo Buhatem: A gente vive em um ponto fora da curva. O Poder Judiciário pode muito, mas não pode tudo. Nos últimos 6 anos a gente tem visto o ativismo judicial como ponto fora da curva no Brasil. Na pandemia a gente viu isso mais do que nunca: o juiz prefeito, o promotor prefeito. É aquele que fecha a cidade, manda internar, desinternar, como se pudesse se imiscuir em questões administrativas próprias do Poder Executivo. Não vejo isso com bons olhos. A Constituição traz a separação de Poderes. Não permite essa invasão. Nos Estados Unidos os ministros da Corte Suprema não têm o protagonismo que os do nosso Supremo Tribunal Federal têm. E não só o Supremo. Existe também no 1º grau e no 2º grau. Esse protagonismo não é bom. Não está no DNA do Poder Judiciário ser amado. Pelo menos 50% a 70% das pessoas que batem às nossas portas vão detestar o Judiciário. Alguém tem que ganhar e alguém tem que perder. E muitas vezes quem ganha não fica satisfeito, porque fica com menos do que pediu. Não é um Poder querido, mas é a Constituição. São os ossos do ofício.

O ativismo é mais comum nos tribunais superiores?
Temos no Brasil um sistema de precedentes, que acaba desaguando nas demais esferas. Quando as cortes superiores trazem esses exemplos, isso acaba sendo um norte para toda a magistratura. Quando os tribunais superiores praticam o ativismo, isso acaba sendo um exemplo para os demais juízes. “Se o Supremo pode, eu também posso”, pensam. Não se vê como exemplo das cortes superiores a tão propalada segurança jurídica. Acaba não se vendo também nas cortes estaduais. Começamos no Código de Processo Civil de 1973 a uniformização da jurisprudência. Até hoje não conseguimos.

Esse ativismo sempre existiu?
Existia, mas era 2, em uma escala de zero a 10. Isso aumentou. Dependendo do tribunal em que se vê está acima de 5, algo em torno de 7. Toda decisão hoje tem um princípio disso ou daquilo. Mas a gente tem lei. Então os princípios não devem nortear as decisões.

A Lava Jato teve efeito no aumento do ativismo?
Não deixou de ter. Mas esse ativismo é até mais visível na matéria civil do que na criminal.

E a TV Justiça, tem influência?
No mundo democrático, nenhum tribunal tem a chamada TV Justiça da maneira que nós temos, ao vivo. Quando foi criada pelo ministro Marco Aurélio Mello, ele tinha uma boa intenção, de dar transparência ao Poder, permitir que as partes se aproximem mais do magistrado, portanto para que o Poder se aproxime mais do cidadão, que paga imposto. Mas a TV Justiça como está formatada, acaba trazendo problemas. Nossos julgamentos são públicos. As portas dos tribunais devem estar abertas para quem quiser assistir e ver o seu julgamento ou o do outro. A TV Justiça acabou levando esse conceito ao pé da letra demais. Não vejo com bons olhos a refrega entre magistrados nas sessões. E já tivemos várias delas graves para o Sistema Judiciário. Sei que hoje seria muito difícil mudar a TV Justça. Mas deveríamos mudar. Um exemplo: poderíamos estabelecer o julgamento sem ser ao vivo, com um delay de 1 dia para que possa cortar e deixar só o que importa. Pode cortar as intrigas, as confusões. É só uma sugestão.

O Executivo cogita pedir o impeachment de ministros do STF [mais tarde pediria o de Alexandre Moraes]. O que o senhor acha disso?
Há vários pedidos de impeachment no Senado. O direito de petição é público, é autônomo. Cada um aciona se quiser. Há muitos pedidos feitos. Se os ministros devem ser impedidos ou não é o Senado que tem que resolver. Existe também para os tribunais de Justiça o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que é uma forma de impeachment. Democracia é isso. Está na Constituição.

Juízes condenados em 1ª instância são aposentados e continuam recebendo salário. Isso é correto?
Existem garantias. Nós somos agentes políticos. Perder o salário é só por sentença transitada em julgado. É o que temos na lei. O juiz é afastado com subsídios, mas perde todos os benefícios. Auxílio alimentação, por exemplo. A Constituição brasileira proíbe que tenhamos qualquer outra atividade a não ser a de professor. Tenho um amigo que mora em um prédio de 5 andares. Dois estão vazios e em outros 2 moram senhores muito idosos. Meu amigo é magistrado. O prédio não tem síndico, porque magistrado não pode ser síndico. É um exemplo banal. Mas quando se tira a remuneração de uma pessoa que passou 30 anos na magistratura e não pôde fazer mais nada, em geral alguém correto, não é muito dizer: você só vai perder o salário quando for transitado em julgado. Estamos perdendo quase 40% do salário em relação à inflação nos últimos 10 anos. A gente não tem fundo de garantia.

Mas outros grupos no setor público e em empresas também têm perdas salariais em relação à inflação. Deveria haver uma reposição diferente para os juízes?
Não estou pedindo uma reposição diferente. Estou pedindo uma reposição no nosso caso constitucional. Nós temos uma única atividade ou no máximo de professor. Não podemos ser deputados, senadores, síndicos, ter empresas, participar de leilão. Existem categorias do Sistema Judiciário que ganham mais do que magistrados.

Funcionários do Judiciário que recebem mais do que magistrados não deveriam passar a ganhar menos em vez de elevar o salário dos juízes?
Existem funcionários do Senado e da Câmara que ganham mais do que senador e deputado. Há essa distorção nos Três Poderes. Nós magistrados não somos os maiores salários da República. Temos só 6 assessores no Rio, é o Estado que tem menos assessores no Brasil. Deputados têm 24 assessores.

Como presidente da Andes, o senhor é remunerado?
Não sou. Nenhum presidente de associação de magistrados é remunerado. Quando fui eleito pela 1ª vez fiz questão de mandar um ofício dizendo que manteria a distribuição [de processos]. Hoje um desembargador do Rio de Janeiro recebe 150 novos processos por mês.

Há proposta no Congresso de reduzir as férias dos juízes. Qual a sua avaliação?
Muitos juízes pegam o 2º mês de férias para trabalhar internamente. Quanto eu tiro férias no dia 1º, eu recebi distribuição no dia 31. Se alguém entra com uma pensão de alimentos eu não posso esperar 1 mês. Quando eu entro em férias eu passo de 8 a 10 dias trabalhando para pegar os últimos expedientes do mês anterior. Durante todo o mês em que eu estou de férias vários processos estão tramitando. Acumula o mês inteiro de processos. Quando eu chego tem mais de 300 processos. Tirar férias é isso.

Não seria mais fácil eliminar o 2º período de férias para que todos trabalhem?
Minha sugestão é adotar o mesmo sistema dos tribunais superiores: 1 mês de recesso e 1 mês de férias. No recesso pode-se trabalhar lá dentro. Não se atende advogado. Coloca-se as coisas em ordem. O sistema de recesso nos tribunais anteriores existiu vários anos.

O IRDR (incidente de resolução de demandas repetitivas) está sendo bem usado?
É um instrumento novo trazido pelo novo Código de Processo Civil para a tentativa de uniformizar a jurisprudência. É um instrumento forte, constitucional. Tem o lado do engessamento da evolução do direito. Imagina uma jurisprudência que não pode ser modificada pela evolução do direito. Por outro lado, dão segurança jurídica. O que eu vejo é que até agora ainda não decolou. Mas é uma boa tentativa. Tanto o IRDR quanto o IAC. Tem que ter a preocupação de não privar do magistrado de fazer a evolução da jurisprudência quando for o caso. O IAC (Incidente de Assunção de Competência) ainda está engatinhando.

O julgamento da implantação do juiz de garantia deve ser retomado pelo STF. Qual sua opinião sobre essa função?
Acho que o juiz de garantia poderia ter impedido o que aconteceu na Lava Jato nos últimos 6 meses, que foi a desconstituição das prisões. Poderia ter afastado o julgador do investigador.

O juiz de garantia teria proporcionado um melhor resultado à Lava Jato?
Pode ser que sim.

Um argumento do então ministro da Justiça Sergio Moro em 2019 é que não haveria juízes suficientes para isso. Haveria?
Hoje faltam só no Rio de Janeiro 90 juízes. Há juízes acumulando comarcas. Tendo o juiz de garantia precisaria de um redimensionamento do quadro. Poderia se pensar em um sistema paulatino de implantação. A cada 5 varas criminais ,1 juiz de garantia, por exemplo. Estamos vivendo um período de recuperação fiscal no Rio de Janeiro. Não teria condições de contratar esses juízes.

Há também a ideia de o juiz de uma vara ser o juiz de garantia de outra. Qual sua avaliação?
Prefiro a ideia de fazer o grupo de varas. O juiz tem que se especializar. Não dá para quebrar galho em uma situação como essa, em que se trabalha com a liberdade.

O senhor é a favor de um novo TRF (tribunal regional federal), em Minas Gerais, em discussão no Senado?
É absolutamente necessário. Minas é um país. As sessões no TRF 1 [em Brasília, hoje responsável por Minas] vão até 22h. Sei que toda criação de órgão é muito difícil. Há falta de dinheiro. Mas é um absurdo a quantidade de processos.

A investigação de venda de sentenças na Bahia está sendo feita corretamente?
Não conheço em detalhes. Acho que o sistema tem que funcionar. Sou absolutamente contra a prisão 5 anos depois de um fato. Tem que ter imediatismo, a menos que se esteja prejudicando as investigações.

O argumento foi de que se estavam prejudicando as investigações, certo?
Tem que dar todas as garantias, para o desembargador e para qualquer pessoa.

É a favor de prisão depois de condenação em 2ª instância?
A prisão em 2ª instância está mal discutida. Tem que ser em outro momento histórico. Acho que a nossa Constituição não permite. Tanto estou certo de que o assunto é tratado no Legislativo. Então, para fazer isso, teria que mudar a Constituição.

O senhor é a favor de uma mudança?
O que a Constituição disser, temos que cumprir.

Qual sua avaliação da situação da Justiça hoje?
Temos 80 milhões de processos. Temos vários problemas graves, uma litigiosidade grave no Brasil, talvez uma das maiores do mundo. Temos 1 processo para cada 2 brasileiros com mais de 18 anos. Desses, 53% são de execução fiscal. Cada processo desses cobra em média R$ 1.700. Custa, em média, R$ 3.000 a 4.200. Dos cerca de 40 milhões de processos restantes, 30 milhões dizem respeito a 30 pessoas jurídicas. Bancos, concessionárias de serviço público, são responsáveis por 87% das ações. Isso não vai fechar nunca. O orçamento do Judiciário pela Lei de Responsabilidade Fiscal é fixo em 6% da receita corrente líquida do Estado. As demandas são infinitas. Vai chegar o momento em que uma ação de alimentos vai levar 6 a 7 meses para ser julgada. O IRDR pode ser uma solução, mas não completamente. Temos que trazer para o sistema a necessidade de o autor procurar o réu para provar que tentou procurar o réu para tentar uma conciliação extra-processual. O consumidor que quer consertar o seu celular, para ganhar um dinheirinho de dano moral, não liga para saber se a Samsung ou a Apple podem pagar. Vai direto para o Judiciário. Eu prego uma conciliação pré-processual. Em 2º lugar, os 30 maiores litigantes brasileiros terão aumento nas custas judiciais. Uma empresa com mais de 40 processos, pagará 10% a mais de custa. E assim por diante. Tem que punir essas empresas. Em 3º lugar, se não houve uma conciliação pré-processual, obrigaria-se a parte a tentar uma mediação processual, e o autor deveria pagar por isso.

Teria que mudar a lei para isso?
Poderia ser feita uma pequena reforma no Código de Processo Civil. A lei dos juizados já traz algumas coisas que acabam não sendo aplicadas. É necessário criar passos para a conciliação pré-processual. Esses passos, com computador, estagiário, advogado, seria pago por essas principais empresas. Sem dinheiro público. Vamos largar de colocar dinheiro público em quem provoca muito o Judiciário. Ali as pessoas podem encontrar alguém fora dos 0800 que não atendem ninguém, só chateiam. Acho que esse sistema de repercussão geral pode vir para o 2º grau sim. Outro dia estava propondo uma ação de uma casa onde moravam 7 pessoas em que o advogado propôs uma ação para cada morador para pedir a mesma coisa. É um absurdo. Tem que mudar isso. Porque quem vai precisar do Judiciário mesmo não terá acesso por causa desse tipo de ação frívola.

Desembargador Marcelo Buhatem é presidente da Andes (Associação Nacional dos Desembargadores)

Fonte: Poder 360

 

Por Des. Marcelo Buhatem em 30/08/2021
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